A VIDA NA FRONTEIRA COM O INFINITO
SEGUNDA PARTE
A NAVE PERDIDA
Registro de bordo:
Entrávamos no sistema Alpha Centauro,
já havíamos encontrado a apagada estrela C, caminhávamos para chegar ao futuro
lar quando a fatalidade cruzou nosso caminho.
O enorme cometa ou coisa
parecida se aproximou e tomou conta do firmamento, a Roda parou, metade dos
habitantes foram sufocados pela terra da área agrícola. Uma tremenda força
gravitacional a impelia ora para um lado, ora para outro. Éramos um joguete
preso àquele bólide gigantesco na sua trajetória.
A princípio não tínhamos
noção de onde estávamos. Na tela do visor, que ainda funcionava, apenas luz
fosca e gelo. Foram terríveis horas para as quatro mil e seiscentas pessoas que
sucumbiam ou viam seus semelhantes serem massacrados por toneladas de entulhos.
A astronave por fim se assentou, ficara presa e todos os sistemas internos
parados.
Os sobreviventes, aos
poucos, se aproximaram do local onde se formara efeito gravitacional. A pequena
população, apavorada, em pânico, assemelhava-se às almas perdidas no “inferno
de Dante”. Pavoroso era o ambiente, só não entendíamos porque ainda existíamos.
Pelo menos os equipamentos de emergência funcionavam e o ar não vazara.
Independente de organização,
os socorros foram feitos e os feridos amontoados por cima dos escombros.
Colaboradores, conseguiram medicamentos e improvisaram o hospital.
Nunca poderíamos sequer
imaginar um cometa de tais proporções, a ponto de reter tanta gravidade,
deveria ser do tamanho de um planeta. Até hoje não entendemos como não fomos
estraçalhados. Seja como for, por sorte a base do navio simplesmente se prendeu
à superfície, encravando-se no gelo.
Ficamos vários dias naquelas
condições. Os que sobraram, se não agissem, também pereceriam. Algo urgente
haveria de ser feito. Foi quando o comandante Tasco teve a iniciativa de
organizar um plano de emergência. Assim, reuniu uma equipe de apoio e
distribuiu funções:
— Alex, quero que faça um
estudo para nos liberarmos deste cometa. Encontre pessoas capacitadas e forme
um grupo de trabalho.
Leon e Katume, em breve toda
sorte de germes poderá nos atacar, corpos de pessoas e animais irão se decompor.
Não poderemos utilizar os desintegradores, encontrem um meio de retirá-los para
fora da nave. Procurem utilizar homens fortes e que possam agir com rapidez.
Terminada a desinfeção, organizem saúde e alimentação.
— Mas como vamos retirar os
corpos através da Roda? perguntou Leon.
— Prevendo situações graves,
existem saídas lacradas nas paredes da Roda. Terão de alcançar o centro de
comando, para descobrir onde estão. Se não conseguirem acionar os arquivos,
peguem a planta manual numa gaveta embaixo do painel de direção.
Para atender as ordens de
Tasco, o grande desafio era o de sair daquele astro, principalmente diante da
confusão material existente. De qualquer forma os estudos começaram.
Antes de tentarmos uma
saída, seria necessário analisar cuidadosamente as consequências para o
aparelho e para a tripulação. Preocupava-nos se os propulsores estariam em
condições de funcionar; afinal o navio não fora feito para uso em solo.
A energia emergencial e os
alimentos em breve se extinguiriam, um mês no máximo. As entradas para a base
estavam bloqueadas e a única solução era chegarmos até lá para ligarmos o
sistema de proteção total.
Terra e entulhos haviam
caído sobre as raias tubulares.
Se quiséssemos resolver
nossos problemas, primeiro era escolher a entrada mais viável para iniciar as
escavações. Assim, munidos do que podíamos, começamos o trabalho em duas
galerias. As vedações haviam sido rompidas por detritos de toda espécie, levou
vários dias para limparmos o acesso.
Transferimos toda população
sobrevivente para a base. A gravidade era razoável e nos permitia um movimentar
quase normal.
Nenhuma rachadura, nem danos
nos equipamentos, aquilo nos assombrava, embora dávamos graças pela esperança
maior de nos desligarmos daquela massa. Tornara-se tão escuro quanto o negrume
do espaço, sinal de que se distanciara dos sóis de Alpha Centauro, o que não
fazia sentido.
Se a nave tivesse sido
construída para cavalgar aquele cometa, até que seria uma ideia aceitável, sem
problemas poderíamos acompanhar sua órbita até algum ponto longínquo do espaço.
O desconforto era grande,
mas fora possível uma distribuição de todos os ocupantes da espaçonave. Tudo
improvisado, a vida teve uma rotina tolerável.
Organizado o sistema de sobrevivência retirado
os corpos, chegara a vez das providências para desencravarmos a base e colocar
o navio em direção ao infinito. Toda a frente estava sob o gelo, seria preciso
elevá-la. Para isto utilizaríamos os sub-jatos existentes por baixo do grande
lastro. A seguir os grandes propulsores para o deslocamento.
Não perdemos tempo, não
havia outra alternativa. Assim, com todos os habitantes em locais seguros,
procedemos a experiência. Os visores mostravam tudo, inclusive a pesadíssima
base presa na crosta branca e brilhante pela ação das luzes direcionadas.
Tasco deu a ordem, os
motores auxiliares entraram em ação, tudo sacolejava, aos poucos se vislumbrou
o casco em toda sua extensão. Do lado externo um turbilhão de névoa se erguia,
o calor das turbinas fazia a superfície gelada se desintegrar. Tão logo a
frente se erguera, entrava em ignição os propulsores, a nave apenas começara a
se locomover quando tudo entrou em pane. O enorme navio apenas deslizou sobre a
duríssima camada hipercongelada, ficando imóvel como se estivesse numa
plataforma descomunal. Foram em vão as tentativas, os computadores mostravam
irregularidades em muitos setores do processo de combustão, principalmente nos
sensores.
Desanimadora a análise que
se seguiu. Não menos de cinco anos para uma nova tentativa. Tempo máximo para
uso do sistema emergencial.
A tentativa fracassada
provara que nem tudo estava perfeito como pensávamos. Estragos daquela natureza
não eram previstos. Por outro lado, somente poderíamos saber se ligássemos os
propulsores principais.
Neste ponto das anotações, o
comentarista retorna ao dia em que foram feitas e continua: ainda não sabemos o
que nos reserva o futuro. Este grande cometa está nos levando para regiões
desconhecidas, se conseguirmos sobreviver até o término dos trabalhos, nos
restará a esperança de procurarmos uma estrela, caso contrário seremos parte
dele para sempre.
Não tivemos condições de
medir a velocidade deste astro, mais parece um planeta que se deslocou da
órbita de algum sistema.
Não sabemos o que restaram
da frota, se todos os navios estão espalhados neste mundo hostil, se foram
destroçados ou não. Já tentamos comunicação e não obtivemos qualquer resposta.
Pelo que conhecemos sobre
cometas, a única coisa que se enquadra é o gelo. Sequer nos interessou
analisá-lo, sabemos apenas que não está sendo nocivo ao material externo. Os
sistemas funcionam normalmente, apenas a temperatura baixou um pouco.
Alguns estudiosos, vêm
tentando descobrir a órbita deste gigante, calculam estar numa reta, cujo
desvio é tão insignificante que os processadores não registram. Formularam a
hipótese de que quando fomos colhidos estávamos em velocidade máxima e por
alguma razão ficamos a frente dele. Nos alcançou e sua força gravitacional nos
prendeu. Isto quer dizer que possui uma velocidade maior que a da nave.
Uma coisa é certa, ele não
pertence ao sistema Alpha e não sabemos para onde está nos levando, nem
tampouco que tipo de astro é realmente.
Completa-se um ano da
tragédia que nos envolveu, hoje é 10 de julho de 321. Esta é a nave 355 da
Confederação Terrena, população atual de 1.530 pessoas. O histórico exposto
representa os acontecimentos principais ocorridos após a captação da astronave,
até hoje. Informante responsável — Alex Port, assessor de Ferguson Tasco —
Comandante em exercício.
Dos registros de bordo, o de
Alex Port expressou os fatos de maneira sintética e objetiva.
Para aqueles sobreviventes,
as dificuldades estavam apenas começando, mal sabiam que muita coisa haveria
pela frente.
Passaram cinco anos presos,
no final o frio aumentara devido ao esgotamento gradativo da energia. O sistema
de conservação permanente começava a apresentar problemas. No âmbito social a
cultura decaia diante da precariedade escolar. Todos tinham medo, embora
mantivessem a esperança.
No calendário, o mês de maio
de 326 seria decisivo. Depois de um esforço de vários anos, o sistema propulsor
fora recomposto. Muitos técnicos capacitadíssimos haviam sucumbido no desastre,
assim em muitos casos, para se trocar uma simples peça era necessário
estudá-la. Isto motivou muitos atrasos. Mas, por fim tudo estava pronto.
No dia 15 de maio, foram
acionadas as grandes turbinas, só que dessa vez tudo funcionou. A própria
superfície serviu de base de lançamento. O eixo rotacional fora previamente
protegido. O próprio gelo que se acumulara naqueles anos também fixara a roda
no corpo da base.
Deixando uma enorme cratera,
a grande nave se projetou e se desligou do incômodo astro. Os terráqueos
estavam livres. Pareciam um pedaço daquele astro, bloco de gelo com os contorno
do grande navio. Nem o calor da ignição fizera romper a carapaça branca.
Foram meses de espera,
vivendo sem gravidade. Equipes tiveram de trabalhar no lado esterno para
remover as placas.
Levou muito tempo para
novamente se organizarem, dois anos ou mais. Nesse período recolocaram a terra
nas áreas agrícolas, reativaram a grande roda e reiniciaram as plantações.
Limparam as ruas, as casas e a população foram redistribuídas.
Num consenso, autoridades
foram votadas e assumiram posições. Consertos mecânicos e eletrônicos foram executados.
As escolas voltaram a funcionar com professores escolhidos entre os mais
capacitados. Quando tudo terminou, a alegria voltou e a esperança.
Somente após a normalização,
Link, o novo comandante, convocando dez auxiliares, passou a analisar a posição
do navio e a direção que estavam. Falando ao grupo, observou:
— Não podemos ficar a deriva
simplesmente, temos que analisar os astros em todos os ângulos. Jaques, Antunes
e Salim farão cobertura pelos telescópios que acabaram de ser recuperados.
Façam uma tomada geral. Pelo visor simples, percebi que estamos prestes a
entrar no espaço intergaláctico, no vazio total e eterno. É urgente que nos
direcionemos para a estrela mais próxima.
Jesse e David ficam
encarregados de procurarem-na através do sensoriamento magnético. Os demais me
auxiliarão no mapeamento, precisamos organizar provisoriamente um levantamento
de toda região estelar onde nos encontramos.
Conforme observaram, os
arquivos de configuração das constelações de nada nos servem. Em qualquer ângulo,
nas mais diversas regiões siderais, as posições astrais divergem do local onde
estamos. Isto quer dizer que nos encontramos numa área da galáxia nunca estuda
pelo homem.
Bem, vamos ao trabalho, é urgente que saibamos para
onde temos que ir.
Por vários dias, a equipe se
dedicou às pesquisas, começaram pelas estrelas de maior intensidade, depois
para as de menor. Aos poucos procedia-se a nova programação dos computadores.
No final, o resultado foi impressionante. A conclusão era de que não haveria
necessidade de mudar nem um milionésimo de grau na direção. A estrela mais
próxima era a mais apagada que se divisava no centro do visor, não mais que um
ano luz de distância. De oitava grandeza, com quatro planetas. Relativamente
pequena, mas com toda possibilidade de gerar vida.
Como aquilo acontecera,
ninguém conseguira decifrar. O desvio da nave havia sido muito grande, bilhões
ou trilhões de quilômetros numa diagonal que colocou o sistema visual em total
disparidade com o que era familiar. Mas afinal, isto não importava diante da
solução de vida que procuravam. O objetivo era alcançarem um planeta habitável,
onde quer que fosse.
Link, falando pela televisão
anunciou que o caminho fora definido. Seguiriam para Argenta, nome que dera à
pequena estrela que divisava com o infinito.
Poucos eram as companheiras
visuais de Argenta. O vazio até ela parecia total, o que possibilitava manter a
astronave na velocidade adquirida e também permitiria chegarem em oitenta anos
ao sistema.
Setenta e cinco anos
passaram, a população dobrara e a comunidade se manteve dentro dos princípios
terrestres. A terrível tragédia fora esquecida e os humanos estavam cheios de
esperança diante da ofuscante estrela que se destacava no firmamento.
Em setembro de 408, o então
comandante Marcos Montelo reduziu a velocidade. Pelos cálculos o sistema
planetário estava próximo. O volume estelar dos visores desaparecera, o
infinito parecia um quadro negro marcado apenas pelo luzente astro central.
Sondas foram encaminhadas.
Não demorou, em poucas semanas
as imagens planetárias eram vistas. O povo comemorou quando na segunda órbita
um planeta azulado era visto, sinal característico de atmosfera análoga à
terrestre. No entanto, as primeiras tomadas do solo mostravam apenas áreas
cobertas de gelo.
A tristeza já ia se abater
sobre a solitária cidade, quando paisagens cheias de vida surgiram nos telões,
identificando florestas e habitantes.
Imediatamente a alegria
retornou, o mundo que sonhavam estava perto, mas não deixava de existir um
porém, era habitado.
Alguns anos depois, em
dezembro de 412, o grande navio entrou em órbita de Marino, nome que recebeu.
Nos dias que se antecederam, numa reunião com líderes, ficou estabelecido que
iriam orbitar por algum tempo o planeta.
Os levantamentos mostravam que apenas uma
faixa de 2.000 quilômetros disposta em volta do equador era propícia a vida.
Uma população de cerca de cinco milhões de seres ocupavam a terça parte dessa
faixa, ou seja a única terra disponível. Eram homens e mulheres muito
semelhantes aos humanos, exceto possuírem pelos, obviamente devido às condições
climáticas. Observados pelas câmeras das sondas, eles mantinham sociedade quase
tribal, usavam roupas, lanças, espadas e possuíam casas, muito primitivos
diante dos terrestres.
A situação para os habitantes da Astronave não
era das melhores. Precisavam de um lugar para viver, entrar naquele mundo era
uma temeridade, teriam de dizimar os nativos ou sujeitarem-se a serem
trucidados.
Marcos sentiu que a decisão
não poderia ser sua, que teria de estabelecer um conselho. Convidou autoridades
e pessoas capacitadas.
Reuniram-se no salão
destinado ao clube, ao todo formavam um grupo de vinte.
Marcos, tomando a palavra,
iniciou:
— Encontramos um planeta com
perfeitas condições para nos estabelecermos. Por outro lado, é habitado, são
primitivos e parecem atender a lei do mais forte. O mundo é deles, vivem se
digladiando, conforme chegamos a filmar, no entanto subsistem.
De acordo com a regra,
devemos continuar viagem.
Os três planetas restantes
são inóspitos. A estrela mais próxima está a vinte anos luz, este navio não aguentaria.
Para uma posição, considerem que nada mais temos a ver com a frota. Valerá
nossa decisão, aquilo que ficar definido será colocado em prática.
Jansen, um dos auxiliares do
comando, observou:
— Antes de estudarmos a
solução, peço licença para acrescentar que efetuei um levantamento geológico. O
processo de glaciação que envolve o planeta está no final. Pelo visor e fotos,
observei que as geleiras estão derretendo. A quantidade de água é muito grande,
os oceanos logo vão aparecer, bem como os continentes.
— Quanto tempo para isto?
Interpelou Sancho, administrador da cidade.
— Da forma que as geleiras
cedem, dentro de aproximadamente cinquenta anos, uma faixa bem maior se
estenderá, mas no espaço de quinhentos uma boa parte do planeta estará livre.
Por outro lado, muitas inundações ocorrerão. Se descermos, deveremos preferir
lugares altos. Quanto aos nativos, se os deixarmos nos lugares onde estão,
serão tragados pelas águas.
Joseli que numa ponta da
mesa acompanhava o comentário entrou em cena:
— Então, se ficarmos
poderemos salvar o povo de Marino e ao mesmo tempo irmos preparando nosso
local.
Marcos interrompeu:
— Gostaria que nosso ministro religioso, Padre
Santos nos desse a opinião.
— É cedo para uma decisão, mas dentro do
âmbito religioso observei que uma força além de nossa concepção nos empurrou
para esta estrela, vejam que não tínhamos uma direção e ao mesmo tempo
estávamos posicionados para chegarmos aqui. Nem tudo é acaso, particularmente
acredito que Deus nos colocou neste lugar. Seja visto que depois que nos
desligamos do cometa, nada mais de anormal aconteceu, quero dizer, nenhum outro
acidente. Não desejo influenciar, mas a configuração astral onde estamos é
totalmente incompatível com a que conhecíamos no sistema de Alpha, podemos
estar até no outro lado da galáxia. Enquanto estávamos no “cometa” nada vimos,
não sabemos o que aconteceu.
Resumindo, quero dizer que
temos uma missão muito importante aqui, talvez nem seja em relação a nós,
principalmente em relação às vidas lá em baixo.
— O Padre Santos, que
conheceu de perto amargos dias no passado, deu seu voto, pelo que entendi, por
ele devemos ficar. É sua vez Tenente Fusco, qual sua opinião na esfera militar?
— Temos armas suficientes
para liquidar todos os marinenses, isto não quer dizer que partilho deste
pensamento. Mas podemos estabelecer para nós uma área intransponível, em
qualquer lugar que for demarcada.
— Isto seria uma invasão,
ficaríamos presos, vez ou outra nossa vigilância poderia falhar. São
extremamente ferozes, não nos aceitariam, mais cedo ou mais tarde teríamos que
dizimá-los, ou então isto aconteceria conosco. Observou Regis, professor de
história, continuando:
Estou com o Padre Santos,
devemos orbitar por algum tempo, auxiliá-los e orientá-los. Conseguir nossa
aceitação junto deles é prioridade para que tenhamos nosso lugar.
Todos partilharam das
conversações, o debate foi acirrado entre os que queriam uma ação imediata e os
que opinavam por moldarem os bárbaros viventes de Marino.
Terminada a reunião, o
resultado favorável à permanência em órbita, no tempo que fosse necessário para
aproximação com os nativos, prevaleceu.
Os membros do conselho
favoráveis ao procedimento e os contrários, foram convidados a estudarem formas
de acesso à vida na superfície. O comando forneceria o que fosse necessário
para desempenho das missões.