domingo, 5 de outubro de 2014





A VIDA NA FRONTEIRA COM O INFINITO

SEGUNDA PARTE


A NAVE PERDIDA


Registro de bordo:
Entrávamos no sistema Alpha Centauro, já havíamos encontrado a apagada estrela C, caminhávamos para chegar ao futuro lar quando a fatalidade cruzou nosso caminho.
O enorme cometa ou coisa parecida se aproximou e tomou conta do firmamento, a Roda parou, metade dos habitantes foram sufocados pela terra da área agrícola. Uma tremenda força gravitacional a impelia ora para um lado, ora para outro. Éramos um joguete preso àquele bólide gigantesco na sua trajetória.
A princípio não tínhamos noção de onde estávamos. Na tela do visor, que ainda funcionava, apenas luz fosca e gelo. Foram terríveis horas para as quatro mil e seiscentas pessoas que sucumbiam ou viam seus semelhantes serem massacrados por toneladas de entulhos. A astronave por fim se assentou, ficara presa e todos os sistemas internos parados.
Os sobreviventes, aos poucos, se aproximaram do local onde se formara efeito gravitacional. A pequena população, apavorada, em pânico, assemelhava-se às almas perdidas no “inferno de Dante”. Pavoroso era o ambiente, só não entendíamos porque ainda existíamos. Pelo menos os equipamentos de emergência funcionavam e o ar não vazara.
Independente de organização, os socorros foram feitos e os feridos amontoados por cima dos escombros. Colaboradores, conseguiram medicamentos e improvisaram o hospital.
Nunca poderíamos sequer imaginar um cometa de tais proporções, a ponto de reter tanta gravidade, deveria ser do tamanho de um planeta. Até hoje não entendemos como não fomos estraçalhados. Seja como for, por sorte a base do navio simplesmente se prendeu à superfície, encravando-se no gelo.
Ficamos vários dias naquelas condições. Os que sobraram, se não agissem, também pereceriam. Algo urgente haveria de ser feito. Foi quando o comandante Tasco teve a iniciativa de organizar um plano de emergência. Assim, reuniu uma equipe de apoio e distribuiu funções:
— Alex, quero que faça um estudo para nos liberarmos deste cometa. Encontre pessoas capacitadas e forme um grupo de trabalho.
Leon e Katume, em breve toda sorte de germes poderá nos atacar, corpos de pessoas e animais irão se decompor. Não poderemos utilizar os desintegradores, encontrem um meio de retirá-los para fora da nave. Procurem utilizar homens fortes e que possam agir com rapidez. Terminada a desinfeção, organizem saúde e alimentação.
— Mas como vamos retirar os corpos através da Roda? perguntou Leon.
— Prevendo situações graves, existem saídas lacradas nas paredes da Roda. Terão de alcançar o centro de comando, para descobrir onde estão. Se não conseguirem acionar os arquivos, peguem a planta manual numa gaveta embaixo do painel de direção.

Para atender as ordens de Tasco, o grande desafio era o de sair daquele astro, principalmente diante da confusão material existente. De qualquer forma os estudos começaram.
Antes de tentarmos uma saída, seria necessário analisar cuidadosamente as consequências para o aparelho e para a tripulação. Preocupava-nos se os propulsores estariam em condições de funcionar; afinal o navio não fora feito para uso em solo.
A energia emergencial e os alimentos em breve se extinguiriam, um mês no máximo. As entradas para a base estavam bloqueadas e a única solução era chegarmos até lá para ligarmos o sistema de proteção total.
Terra e entulhos haviam caído sobre as raias tubulares.
Se quiséssemos resolver nossos problemas, primeiro era escolher a entrada mais viável para iniciar as escavações. Assim, munidos do que podíamos, começamos o trabalho em duas galerias. As vedações haviam sido rompidas por detritos de toda espécie, levou vários dias para limparmos o acesso.
Transferimos toda população sobrevivente para a base. A gravidade era razoável e nos permitia um movimentar quase normal.
Nenhuma rachadura, nem danos nos equipamentos, aquilo nos assombrava, embora dávamos graças pela esperança maior de nos desligarmos daquela massa. Tornara-se tão escuro quanto o negrume do espaço, sinal de que se distanciara dos sóis de Alpha Centauro, o que não fazia sentido.
Se a nave tivesse sido construída para cavalgar aquele cometa, até que seria uma ideia aceitável, sem problemas poderíamos acompanhar sua órbita até algum ponto longínquo do espaço.
O desconforto era grande, mas fora possível uma distribuição de todos os ocupantes da espaçonave. Tudo improvisado, a vida teve uma rotina tolerável.
 Organizado o sistema de sobrevivência retirado os corpos, chegara a vez das providências para desencravarmos a base e colocar o navio em direção ao infinito. Toda a frente estava sob o gelo, seria preciso elevá-la. Para isto utilizaríamos os sub-jatos existentes por baixo do grande lastro. A seguir os grandes propulsores para o deslocamento.
Não perdemos tempo, não havia outra alternativa. Assim, com todos os habitantes em locais seguros, procedemos a experiência. Os visores mostravam tudo, inclusive a pesadíssima base presa na crosta branca e brilhante pela ação das luzes direcionadas.
Tasco deu a ordem, os motores auxiliares entraram em ação, tudo sacolejava, aos poucos se vislumbrou o casco em toda sua extensão. Do lado externo um turbilhão de névoa se erguia, o calor das turbinas fazia a superfície gelada se desintegrar. Tão logo a frente se erguera, entrava em ignição os propulsores, a nave apenas começara a se locomover quando tudo entrou em pane. O enorme navio apenas deslizou sobre a duríssima camada hipercongelada, ficando imóvel como se estivesse numa plataforma descomunal. Foram em vão as tentativas, os computadores mostravam irregularidades em muitos setores do processo de combustão, principalmente nos sensores.
Desanimadora a análise que se seguiu. Não menos de cinco anos para uma nova tentativa. Tempo máximo para uso do sistema emergencial.
A tentativa fracassada provara que nem tudo estava perfeito como pensávamos. Estragos daquela natureza não eram previstos. Por outro lado, somente poderíamos saber se ligássemos os propulsores principais.
Neste ponto das anotações, o comentarista retorna ao dia em que foram feitas e continua: ainda não sabemos o que nos reserva o futuro. Este grande cometa está nos levando para regiões desconhecidas, se conseguirmos sobreviver até o término dos trabalhos, nos restará a esperança de procurarmos uma estrela, caso contrário seremos parte dele para sempre.
Não tivemos condições de medir a velocidade deste astro, mais parece um planeta que se deslocou da órbita de algum sistema.
Não sabemos o que restaram da frota, se todos os navios estão espalhados neste mundo hostil, se foram destroçados ou não. Já tentamos comunicação e não obtivemos qualquer resposta.
Pelo que conhecemos sobre cometas, a única coisa que se enquadra é o gelo. Sequer nos interessou analisá-lo, sabemos apenas que não está sendo nocivo ao material externo. Os sistemas funcionam normalmente, apenas a temperatura baixou um pouco.
Alguns estudiosos, vêm tentando descobrir a órbita deste gigante, calculam estar numa reta, cujo desvio é tão insignificante que os processadores não registram. Formularam a hipótese de que quando fomos colhidos estávamos em velocidade máxima e por alguma razão ficamos a frente dele. Nos alcançou e sua força gravitacional nos prendeu. Isto quer dizer que possui uma velocidade maior que a da nave.
Uma coisa é certa, ele não pertence ao sistema Alpha e não sabemos para onde está nos levando, nem tampouco que tipo de astro é realmente.
Completa-se um ano da tragédia que nos envolveu, hoje é 10 de julho de 321. Esta é a nave 355 da Confederação Terrena, população atual de 1.530 pessoas. O histórico exposto representa os acontecimentos principais ocorridos após a captação da astronave, até hoje. Informante responsável — Alex Port, assessor de Ferguson Tasco — Comandante em exercício.

Dos registros de bordo, o de Alex Port expressou os fatos de maneira sintética e objetiva.
Para aqueles sobreviventes, as dificuldades estavam apenas começando, mal sabiam que muita coisa haveria pela frente.
Passaram cinco anos presos, no final o frio aumentara devido ao esgotamento gradativo da energia. O sistema de conservação permanente começava a apresentar problemas. No âmbito social a cultura decaia diante da precariedade escolar. Todos tinham medo, embora mantivessem a esperança.
No calendário, o mês de maio de 326 seria decisivo. Depois de um esforço de vários anos, o sistema propulsor fora recomposto. Muitos técnicos capacitadíssimos haviam sucumbido no desastre, assim em muitos casos, para se trocar uma simples peça era necessário estudá-la. Isto motivou muitos atrasos. Mas, por fim tudo estava pronto.
No dia 15 de maio, foram acionadas as grandes turbinas, só que dessa vez tudo funcionou. A própria superfície serviu de base de lançamento. O eixo rotacional fora previamente protegido. O próprio gelo que se acumulara naqueles anos também fixara a roda no corpo da base.
Deixando uma enorme cratera, a grande nave se projetou e se desligou do incômodo astro. Os terráqueos estavam livres. Pareciam um pedaço daquele astro, bloco de gelo com os contorno do grande navio. Nem o calor da ignição fizera romper a carapaça branca.
Foram meses de espera, vivendo sem gravidade. Equipes tiveram de trabalhar no lado esterno para remover as placas.
Levou muito tempo para novamente se organizarem, dois anos ou mais. Nesse período recolocaram a terra nas áreas agrícolas, reativaram a grande roda e reiniciaram as plantações. Limparam as ruas, as casas e a população foram redistribuídas.
Num consenso, autoridades foram votadas e assumiram posições. Consertos mecânicos e eletrônicos foram executados. As escolas voltaram a funcionar com professores escolhidos entre os mais capacitados. Quando tudo terminou, a alegria voltou e a esperança.
Somente após a normalização, Link, o novo comandante, convocando dez auxiliares, passou a analisar a posição do navio e a direção que estavam. Falando ao grupo, observou:
— Não podemos ficar a deriva simplesmente, temos que analisar os astros em todos os ângulos. Jaques, Antunes e Salim farão cobertura pelos telescópios que acabaram de ser recuperados. Façam uma tomada geral. Pelo visor simples, percebi que estamos prestes a entrar no espaço intergaláctico, no vazio total e eterno. É urgente que nos direcionemos para a estrela mais próxima.
Jesse e David ficam encarregados de procurarem-na através do sensoriamento magnético. Os demais me auxiliarão no mapeamento, precisamos organizar provisoriamente um levantamento de toda região estelar onde nos encontramos.
Conforme observaram, os arquivos de configuração das constelações de nada nos servem. Em qualquer ângulo, nas mais diversas regiões siderais, as posições astrais divergem do local onde estamos. Isto quer dizer que nos encontramos numa área da galáxia nunca estuda pelo homem.
Bem, vamos ao trabalho, é urgente que saibamos para onde temos que ir.
Por vários dias, a equipe se dedicou às pesquisas, começaram pelas estrelas de maior intensidade, depois para as de menor. Aos poucos procedia-se a nova programação dos computadores. No final, o resultado foi impressionante. A conclusão era de que não haveria necessidade de mudar nem um milionésimo de grau na direção. A estrela mais próxima era a mais apagada que se divisava no centro do visor, não mais que um ano luz de distância. De oitava grandeza, com quatro planetas. Relativamente pequena, mas com toda possibilidade de gerar vida.
Como aquilo acontecera, ninguém conseguira decifrar. O desvio da nave havia sido muito grande, bilhões ou trilhões de quilômetros numa diagonal que colocou o sistema visual em total disparidade com o que era familiar. Mas afinal, isto não importava diante da solução de vida que procuravam. O objetivo era alcançarem um planeta habitável, onde quer que fosse.
Link, falando pela televisão anunciou que o caminho fora definido. Seguiriam para Argenta, nome que dera à pequena estrela que divisava com o infinito.
Poucos eram as companheiras visuais de Argenta. O vazio até ela parecia total, o que possibilitava manter a astronave na velocidade adquirida e também permitiria chegarem em oitenta anos ao sistema.

Setenta e cinco anos passaram, a população dobrara e a comunidade se manteve dentro dos princípios terrestres. A terrível tragédia fora esquecida e os humanos estavam cheios de esperança diante da ofuscante estrela que se destacava no firmamento.
Em setembro de 408, o então comandante Marcos Montelo reduziu a velocidade. Pelos cálculos o sistema planetário estava próximo. O volume estelar dos visores desaparecera, o infinito parecia um quadro negro marcado apenas pelo luzente astro central. Sondas foram encaminhadas.
Não demorou, em poucas semanas as imagens planetárias eram vistas. O povo comemorou quando na segunda órbita um planeta azulado era visto, sinal característico de atmosfera análoga à terrestre. No entanto, as primeiras tomadas do solo mostravam apenas áreas cobertas de gelo.
A tristeza já ia se abater sobre a solitária cidade, quando paisagens cheias de vida surgiram nos telões, identificando florestas e habitantes.
Imediatamente a alegria retornou, o mundo que sonhavam estava perto, mas não deixava de existir um porém, era habitado.
Alguns anos depois, em dezembro de 412, o grande navio entrou em órbita de Marino, nome que recebeu. Nos dias que se antecederam, numa reunião com líderes, ficou estabelecido que iriam orbitar por algum tempo o planeta.
 Os levantamentos mostravam que apenas uma faixa de 2.000 quilômetros disposta em volta do equador era propícia a vida. Uma população de cerca de cinco milhões de seres ocupavam a terça parte dessa faixa, ou seja a única terra disponível. Eram homens e mulheres muito semelhantes aos humanos, exceto possuírem pelos, obviamente devido às condições climáticas. Observados pelas câmeras das sondas, eles mantinham sociedade quase tribal, usavam roupas, lanças, espadas e possuíam casas, muito primitivos diante dos terrestres.
 A situação para os habitantes da Astronave não era das melhores. Precisavam de um lugar para viver, entrar naquele mundo era uma temeridade, teriam de dizimar os nativos ou sujeitarem-se a serem trucidados.
Marcos sentiu que a decisão não poderia ser sua, que teria de estabelecer um conselho. Convidou autoridades e pessoas capacitadas.
Reuniram-se no salão destinado ao clube, ao todo formavam um grupo de vinte.
Marcos, tomando a palavra, iniciou:
— Encontramos um planeta com perfeitas condições para nos estabelecermos. Por outro lado, é habitado, são primitivos e parecem atender a lei do mais forte. O mundo é deles, vivem se digladiando, conforme chegamos a filmar, no entanto subsistem.
De acordo com a regra, devemos continuar viagem.
Os três planetas restantes são inóspitos. A estrela mais próxima está a vinte anos luz, este navio não aguentaria. Para uma posição, considerem que nada mais temos a ver com a frota. Valerá nossa decisão, aquilo que ficar definido será colocado em prática.
Jansen, um dos auxiliares do comando, observou:
— Antes de estudarmos a solução, peço licença para acrescentar que efetuei um levantamento geológico. O processo de glaciação que envolve o planeta está no final. Pelo visor e fotos, observei que as geleiras estão derretendo. A quantidade de água é muito grande, os oceanos logo vão aparecer, bem como os continentes.
— Quanto tempo para isto? Interpelou Sancho, administrador da cidade.
— Da forma que as geleiras cedem, dentro de aproximadamente cinquenta anos, uma faixa bem maior se estenderá, mas no espaço de quinhentos uma boa parte do planeta estará livre. Por outro lado, muitas inundações ocorrerão. Se descermos, deveremos preferir lugares altos. Quanto aos nativos, se os deixarmos nos lugares onde estão, serão tragados pelas águas.
Joseli que numa ponta da mesa acompanhava o comentário entrou em cena:
— Então, se ficarmos poderemos salvar o povo de Marino e ao mesmo tempo irmos preparando nosso local.
 Marcos interrompeu:
 — Gostaria que nosso ministro religioso, Padre Santos nos desse a opinião.
 — É cedo para uma decisão, mas dentro do âmbito religioso observei que uma força além de nossa concepção nos empurrou para esta estrela, vejam que não tínhamos uma direção e ao mesmo tempo estávamos posicionados para chegarmos aqui. Nem tudo é acaso, particularmente acredito que Deus nos colocou neste lugar. Seja visto que depois que nos desligamos do cometa, nada mais de anormal aconteceu, quero dizer, nenhum outro acidente. Não desejo influenciar, mas a configuração astral onde estamos é totalmente incompatível com a que conhecíamos no sistema de Alpha, podemos estar até no outro lado da galáxia. Enquanto estávamos no “cometa” nada vimos, não sabemos o que aconteceu.
Resumindo, quero dizer que temos uma missão muito importante aqui, talvez nem seja em relação a nós, principalmente em relação às vidas lá em baixo.
— O Padre Santos, que conheceu de perto amargos dias no passado, deu seu voto, pelo que entendi, por ele devemos ficar. É sua vez Tenente Fusco, qual sua opinião na esfera militar?
— Temos armas suficientes para liquidar todos os marinenses, isto não quer dizer que partilho deste pensamento. Mas podemos estabelecer para nós uma área intransponível, em qualquer lugar que for demarcada.
— Isto seria uma invasão, ficaríamos presos, vez ou outra nossa vigilância poderia falhar. São extremamente ferozes, não nos aceitariam, mais cedo ou mais tarde teríamos que dizimá-los, ou então isto aconteceria conosco. Observou Regis, professor de história, continuando:
Estou com o Padre Santos, devemos orbitar por algum tempo, auxiliá-los e orientá-los. Conseguir nossa aceitação junto deles é prioridade para que tenhamos nosso lugar.
Todos partilharam das conversações, o debate foi acirrado entre os que queriam uma ação imediata e os que opinavam por moldarem os bárbaros viventes de Marino.
Terminada a reunião, o resultado favorável à permanência em órbita, no tempo que fosse necessário para aproximação com os nativos, prevaleceu.

Os membros do conselho favoráveis ao procedimento e os contrários, foram convidados a estudarem formas de acesso à vida na superfície. O comando forneceria o que fosse necessário para desempenho das missões.

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