OS PRIMEIROS CONTATOS
Na Vila Talma o jovem casal
se preparava para a primeira reunião com os habitantes, Burin escolhera o
anoitecer.
Durante o dia, Jales e a
esposa, levaram equipamentos para a maior construção da Vila, situada bem no
centro. Sob os curiosos olhares dos moradores e acompanhados por grupos de
crianças, transitaram o dia todo. Acenaram para homens e mulheres e foram
correspondidos. Fora muito boa a presença de ambos em meio aos aldeões. Gat,
sempre junto, fez questão de oferecer ajuda nos arranjos.
O sol estava baixo, se punha
na direção do mar, quando os primeiros casais já se faziam presentes na pequena
praça, acompanhados de filhos e parentes. Gente de toda idade ia formando uma
pequena multidão. Os terrestres ficaram preocupados, não esperavam aquele
grande volume de pessoas, não caberiam no recinto. Foram então conversar com o
Skan, fazendo-o entender que o local era pequeno, teriam de iniciar ao ar
livre. Este compreendeu e chamou o povo para as laterais do prédio. Gat e os
auxiliares ajudaram na remoção das caixas e montagem de um estrado, com
suportes para o telão. O tempo não estava muito frio, pois já era verão.
Tudo pronto, Burin começou:
— Meu povo, vamos ver coisas
muito estranhas, não se assustem, elas provêm de máquinas criadas por homens
muito adiantados. Este casal é igual a nós, apenas não possuem a mesma
quantidade de pelos que temos e falam outra língua, está aqui para nos
orientar. Não vieram da região dos espíritos, mas de uma cidade que fica no
alto, onde muitos de nossos filhos foram estudar.
Falou ainda durante algum tempo,
depois deu sinal a Jales para entrar em cena. Este ligou o som. Como havia
treinado, disse na mesma linguagem:
— Estamos aqui para mostrar
como é seu mundo e como é a natureza. Antes, quero agradecer a hospitalidade de
vocês e apresentar minha esposa Júlia. Meu nome é Jales, vão nos ver muitas
vezes. Estão me ouvindo alto porque liguei uma máquina de som, agora vou ligar
outra que produzirá imagens, prestem atenção em tudo, é muito importante.
A multidão não entendia
porque estavam ouvindo tão alto o jovem. Mais estarrecida ainda quando a grande
tela ficou clara e logo uma mensagem escrita permaneceu durante algum tempo,
repetindo a mesma orientação de que tudo era produzido por máquinas.
Em narração simples e clara,
sob um fundo musical, as aldeias, campos, vales, florestas, iam sendo
mostradas.
— Agora vejam, vamos subir
um pouco, a vila continua lá, bem menor porque ficamos mais distantes. Podem
ver até outras vilas mais próximas e os caminhos...
Muito devagar e com muito
cuidado para que não houvessem dúvidas, o filme foi mostrando o planeta, até
transformar-se numa bola, depois o retorno até a aldeia e novamente o
distanciamento um pouco mais rápido. Quando novamente o astro apareceu inteiro,
o filme foi fixado e uma pergunta em letras grandes apareceu: — VOCÊS
ENTENDERAM?
Jales, tomando o microfone
perguntou diretamente ao público:
Peço levantarem os braços
todos que entenderam a mensagem, disse na língua nativa.
Um terço dos presentes
levantaram os braços, confirmando.
— Vou repetir o filme, para que
tornem a prestar a atenção.
Novamente foram repetidas as
mesmas cenas e Jales voltou a pedir a mesma coisa, o resultado foi melhor, mais
da metade confirmou haver entendido.
O instrutor desligou a
projeção e chamou o Skan, fazendo-o entender que por aquela noite havia
terminado. O chefe religioso compreendeu e dispensou a população, convidando
para voltarem dali a dois dias. Estranhou e ao mesmo tempo ficou satisfeito,
quando percebeu que sua voz também alcançara a todos.
A aparelhagem foi retirada e
guardada na “igreja”. Gat ajudara novamente o jovem a transportar as peças,
disse que havia gostado muito da exibição e que entendera. O Skan estava
aliviado, sorria, temia não correr bem, mas surpreendera-se.
No dia seguinte era folga,
Jales ia aproveitar para fazer uma visita ao curandeiro. Júlia levantara-se e
muito disposta, organizava a pequena casa auxiliada pelo marido. Estavam nessa
tarefa quando bateram a porta, o homem dissera qualquer coisa, mas não
entenderam, então por gestos mostrou o interior e o compartimento do
“sanitário”. Viera buscar o fétido vasilhame, levando-o junto com outros num
carrinho de mão.
— Foi bom ter vindo, não
sabia como fazer, disse Jales à mulher.
— Veja Jales, quanta roupa
suja, mostrando a grande mala formada. Vou esperar esquentar um pouco e vou
acompanhar as mulheres levando roupas, devem ir a algum lugar para lavá-las.
Assim dito, assim feito,
passado algum tempo, Júlia pegou um recipiente com detergente e o colocou em
meio aos encardidos panos. Fez uma trouxa e se pôs a seguir as mulheres da
vila. No caminho cumprimentou uma e outra que a olhavam com jeito inibido.
Atravessou um pequeno bosque e se viu num descampado, onde a relva verde cobria
vasto terreno. Sobre ela muitas peças estavam estendidas. Continuando a trilha,
foi escutando o vozerio incompreensível das donas de casa, conversavam enquanto
esfregavam roupas a beira de um rio.
Júlia não possuía jeito para
aquilo, nunca havia lavado qualquer pano, tudo sempre fora colocado em máquina.
Mas necessitava aprender. Ficou olhando disfarçadamente como faziam, eram muito
rápidas. Uma das mulheres que estava perto, vendo a dificuldade da moça, se
aproximou e mostrou como devia fazer. Agradeceu e acabou por lavar toda roupa.
Era uma situação que não
estava nos planos, mas muito oportuna pois durante todo o dia trocou algumas
palavras com Lita, uma de suas vizinhas. As duas acabaram voltando juntas, com
mais duas meninas, uma de seis e outra de 3 anos, filhas da nativa.
Jales abriu a caixa de
medicamentos que trouxera, retirando dela um dos estojos completos de pronto
socorro. Fez um pacote juntando tudo que poderia ser útil, e dirigiu-se para a
casa do curandeiro.
Estava em seu posto e
atendia uma paciente, quando o terrestre chegou. Fez menção de atendê-lo, mas
este por sinal indicou que cuidasse da enferma. Jales surpreendera-se, não era
o velho que esperava, mas um jovem com no máximo vinte anos. Enquanto esperava,
sentou-se em uma banqueta e examinou o ambiente. Prateleiras atingiam até o
teto, numa parte vasilhames de vidro e de cerâmica lotavam os compartimentos,
naturalmente com produtos químicos ou poções preparadas. Noutra, separadas em
quadros, grande variedade de ervas medicinais. Uma pequena cama de madeira,
objetos cirúrgicos rudimentares mas aparentemente eficientes cobriam uma mesa.
Notou muita limpeza e organização, inclusive na roupa que vestia. Ao fundo, um
fogão laborava, fervendo água. Quando a doente saiu, pegou os instrumentos que
utilizara e os colocou no caldeirão, retirando-os após com uma pinça.
Antes de atender Jales,
lavou as mãos. A conversa fora melhor do que esperava, durou horas. Nos longos
dias de viagem havia aprendido algumas expressões que associadas às do ensino
na astronave, davam para um diálogo entrecortado.
O rapaz era inteligente, muito
mais do que pensava, assimilava quase tudo. Ficou extremamente contente com os
objetos e os medicamentos, presentes que foram previamente preparados, com
detalhadas explicações ao alcance do curandeiro.
Jales ganhara mais um amigo.
Voltou contente para casa e sentiu-se feliz ao ver Júlia alegre por ter se
relacionado com as vizinhas. Lita acabou passando o dia com ela e a levara para
conhecer as amigas.
Nos dias que se sucederam, o
casal acertou com o Skan a reunião dos aldeões. Primeiro, não seria necessário
a presença de crianças, segundo, os habitantes foram distribuídos em grupos e
as instruções passaram a ser dentro do templo.
Aos poucos, os nativos foram
entendendo as mensagens. Jales e Júlia se revezavam, cada dia era um que
ministrava os ensinamentos, auxiliados pela aparelhagem.
O casal se habituara com a
localidade e os da vila com eles. Depois de três meses já estavam entrosados
com o modo de viver.
A saudade da cidade espacial
era compensada pelas belezas naturais e pelo mar com suas límpidas águas a
cobrir as areias da praia. O raiar da grande estrela era um espetáculo sem par
no horizonte. O amor que os enlaçavam completava a falta dos benefícios da
modernidade.
Nem tudo era paz e harmonia,
o povo da aldeia vivia com medo, quando não era a guerra que ceifava vidas, era
o banditismo que imperava na região, originado nas épocas de fome. Segundo os
moradores, a princípio roubavam os poucos alimentos que possuíam. Depois ouro e
tudo que representasse valor. Na última vez, foi o bando de Colon com mais de
trinta homens. Armados com espadas, lanças e barretes de ferro, entraram
saqueando e matando. Estupraram mulheres e quando saíram, um rastro de sangue e
sofrimento ficou marcando a pacata vila. Gat tentou resistir com alguns
comandados, ficou ferido e perdeu três auxiliares, além de uma filha tomada a
força pelo próprio chefe do bando.
Jales confirmou o fato com o
guardião e passou a pensar numa forma de ajudar e ao mesmo tempo evitar risco
para o treinamento. Assim, numa das noites, após voltar da reunião, resolveu
ligar o comunicador:
— Fale Jales, aqui é Jansen.
O jovem explicou
detalhadamente a situação, pedindo orientação e ajuda.
— Temos problemas
semelhantes em duas outras vilas, vou me comunicar com Regis e o Tenente,
provável lhe enviarmos algum material bélico. Entre em contato novamente
amanhã, para confirmação.
Jales comentou o assunto com
Júlia, que já conhecia por informação de suas amigas. Na lavagem de roupas, o
diz que diz era o dia todo, quando não estavam correndo atrás das crianças
estavam fofocando. Ficou sabendo que duas das mulheres estupradas perderam a
fala. Conheceu viúvas que viviam a maldizer os bandidos. Falando ao marido,
disse:
— Vamos ter que ficar
atentos com os equipamentos, teremos de mantê-los escondidos.
— Vamos é ter que por fim em
suas ações, já falei com Jansen, é provável que nos enviem algumas armas.
— Jales, nunca peguei numa
coisa dessas.
— Amanhã vou saber a decisão
e receber instruções, é melhor esperarmos.
Mas, mudando de assunto.
Nosso trabalho parece que vai bem. Entendem com facilidade. Ficaram preocupados
depois que mostramos o que vai acontecer no futuro.
Os dois ficaram dialogando
por algum tempo e foram dormir.
No dia seguinte, novamente a
noite, Jales voltou a acionar o comunicador, Jansen atendeu e pediu que
aguardasse um pouco. Passado alguns instantes, voltou e disse:
— Falei com Regis e fizemos
uma reunião. A decisão foi a seguinte: não podemos permitir qualquer falha no
programa, esses bandidos são perigos reais. Teremos de exterminá-los.
— Mas como vou fazer isto
Jansen.
— Não terminei. Você não
fará nada, o guardião e seus homens é que agirão. Vamos lhe enviar alguns
rifles e munição. Deixaremos uma caixa na praia amanhã, fale com o chefe local
e entregue a ele. Depois vá a algum lugar afastado e mostre como usar.
Boa sorte, desligo.
Jales encontrou Gat num tipo
de taberna, estava perto do balcão sorvendo uma bebida. Sentaram-se em um
canto, junto a uma tosca mesa.
Muito atencioso, o forte
homem, com o copo ainda na mão ofereceu ao moço, que agradeceu.
— Voltando ao assunto que
conversamos a alguns dias, gostaria de saber se você gostaria de uma ajuda para
acabar com o bando de Colon.
— Claro, você tem aquela
arma que salvou a vida de meu auxiliar, quando matou aquela fera.
— Não é bem isto Gat.
Expliquei a situação para meus chefes. Amanhã cedo, na praia chegará uma caixa
com armas que fazem a mesma coisa.
Os olhos do guardião
brilharam, até se aproximou do moço, percebera onde queria chegar. No íntimo
queria vingar a morte dos companheiros e a desgraça da filha. O que ouvia ia ao
encontro de suas intenções. Nervoso, não conseguindo segurar, comentou:
— Se tivesse um tipo de arma
dessas, enfrentaria todo grupo.
— É isto que vai ter e
também seus auxiliares. Preciso de ajuda para transportar a encomenda. Ficará
sob sua responsabilidade, a guardará num quarto forte. Mais tarde, vou
mostrar-lhe e a seus homens como é o manejo delas, vou ensiná-los até não terem
mais dúvidas, mas quando o bando chegar não vou participar da ação.
Uma coisa deve ficar bem
clara e conto com sua promessa, após o uso deverão guardá-las e somente
retirá-las em situação muito especial, como no caso desses homens que trucidam
inocentes sem piedade.
— Prometo sob minha palavra,
farei conforme me pede.
Um enorme sorriso surgiu no
rosto severo do homem da lei; vinha estudando a tempos uma forma de reprimir os
bandidos, mas não podia contar com os homens da vila, apenas se dedicavam a
pescar, plantar e colher os frutos. Alguns haviam participado de batalhas na
guerra, mas não estavam adestrados para enfrentar bandidos. Sua guarda era de
apenas seis auxiliares, sempre ocupados em resolver pequenas brigas.
Fez questão que o rapaz
tomasse o tipo de vinho que era servido no lugar.
Enquanto bebia, Jales fez
uma observação:
— Seria bom não comentar
nada sobre isto e pedir o mesmo para seus comandados, a notícia pode se
espalhar. Se ficarem sabendo, poderão agir de surpresa ou em horários que
estamos dormindo.
— Você tem razão Jales, é
preciso manter segredo.
— Outra coisa, para evitar
ferimentos nos habitantes, seria bom manter vigias ou informantes para avisarem
da aproximação deles. Seria oportuno atacá-los antes de chegarem a aldeia.
Continuaram conversando por
bom tempo. Gat revelou ao amigo que era casado, que seus filhos eram quatro,
dois homens casados e duas filhas solteiras, sendo que uma delas estava
perturbada por ter sido estuprada por aqueles facínoras.
Quando voltou para casa, já
escurecia e se aproximava da hora do treinamento, Júlia estava impaciente e não
se mostrou nada tolerante:
— Precisava ficar na taberna
tanto tempo?
— Meu bem, Gat me segurou na
conversa.
— Na conversa ou na bebida?
Você está exalando álcool!
Realmente o moço sentia-se
um pouco aéreo, não percebera que havia ingerido a boa bebida um pouco além do
que deveria.
Naquela noite era a mulher
que instruiria o pessoal.
Para evitar discussão,
prometeu que não tornaria a exagerar e que ela tinha razão.
— — —
Na grande aldeia Vale Verde,
sede do Reino Sumano, Tropo passava a maior parte do tempo com Vina. Imitando
Sato, diminuiu as andanças e começou a coordenar as províncias de seu Forte.
Sem guerra, a vida era tranquila. Autodidata, conseguiu traduzir os livros dos
terrestres. Passo a passo, se inteirava da vida dos humanos. Duas horas por
dia, ensinava seus auxiliares diretos e participava de todas as reuniões do
casal destinado para aquela “cidade”. Inclusive, ajudava os terráqueos a
orientar seu povo.
Jasun, ligado aos princípios
antigos, encontrava dificuldades para entender. O Rei era paciente e queria que
o amigo ficasse a par das mudanças que iriam ocorrer. O velho homem se
irritava, dizia estar velho para aprender, mesmo assim, com muito custo,
conseguiu assimilar alguns ensinamentos.
Tropo não comentava, muito
astuto, no seu íntimo temia o domínio daquela raça que estava sobre sua cabeça.
Para entender as reais intenções dos homens da cidade espacial, se esforçava ao
máximo para compreendê-los. Pensava:
— Se ele e o grupo de
conselheiros conhecessem com profundidade a língua, os costumes e a capacidade
dos terráqueos, no futuro as decisões poderiam ser tomadas com firmeza.
Vina, era uma verdadeira
Rainha, dominadora pela altivez de seus modos, com isto afastava a criadagem,
mas não era orgulho. Passava a maior parte do tempo com os livros, igual ao
marido, também possuía um objetivo, entender os filhos e auxiliar o Rei. Neste
particular, fora mais inteligente, logo que Miriam e Charles iniciaram o
treinamento e se instalaram na Vila, foi visitá-los. No correr dos dias,
tornou-se amiga de Miriam e numa tarde, disse que poderia ensiná-la a falar com
o povo, por sua vez, desejava aprender a língua dos terrestres. A insinuação
agradou a ambas, dali em diante começaram a ser professoras mútuas.
Naquele início de processo
educativo, os problemas não estavam na cidade espacial, mas na superfície, não
existia uma homogeneidade dos costumes, variavam de região para região. Em
alguns lugares tomaram os casais por enviados divinos, dificultando a
compreensão inicial. Em outros, grupos radicais, achando-os intrusos, obrigaram
os guardiões a tomarem medidas severas. Numa das aldeias nogolanas, chegaram a
ferir o instrutor, cumprindo a lei o agressor foi executado. De qualquer forma,
após os primeiros meses, as ocorrências diminuíram, não zeraram devido aos
bandos de malfeitores que atacavam as vilas.
Regis e os demais membros da
Central mudaram suas vidas, desde que abraçaram a execução do projeto. A
responsabilidade era muito grande, mesmo dividida entre eles.
A equipe de Jansen
trabalhava dia e noite na escuta dos chamados, era comum comunicações diárias.
Muitas poderiam ser evitadas, mas outras geravam providências.
Alguns casais direcionados
para áreas muito frias, tiveram problemas de saúde e foram removidos para
lugares menos desfavoráveis. Contrariando as regras, dois voltaram para a
astronave, por não conseguirem se adaptar aos costumes e foram substituídos. Os
soldados também foram retirados. A ação através de pequenas naves passou a ser
o melhor caminho, embora o dispêndio de combustível.
Quanto ao ensino interno,
tudo corria bem, Corin se revelara um excelente coordenador escolar, junto com
a esposa.
Enquanto o trabalho de
conscientização coletiva se processava por coordenação na Roda e execução em
solo, Jales e Júlia cumpriam sua parte com máximo empenho.
Jales, mal dormira naquela
noite, preocupado levantou e abriu a janela, por coincidência, justo no momento
da aterrissagem da nave. O barulho fora grande, devendo ter apavorado os
moradores. Por alguns minutos o silêncio voltara, novamente o estrondo da
partida e rápida ascensão quebraram a monotonia do ambiente.
Clareava o dia e o jovem bem
agasalhado se pôs a caminho da praia, não percebendo que três homens também se
dirigiam para o local. Logo que chegou, viu a caixa que parecia bem pesada. Estava
aproximando dela quando Gat e seus homens apareceram. Dois auxiliares pegaram a
mesma e os quatro voltaram para o centro da Vila. Dirigiram-se para uma forte
casa, residência de Gat e sede da guarda. Este abriu uma porta grande que dava
para a pequena rua e a depositaram no centro do cômodo.
Jales, sob a luz de
archotes, depois de livrar-se das travas, abriu a tampa e retirou de dentro dez
fuzis, munições e um envelope endereçado a ele, contendo instruções.
Voltando-se para o Guardião, disse:
— Vou até minha casa avisar
Júlia que ficarei o dia fora. Enquanto isto, escolha um local distante da vila
para irmos, enrole as armas em panos para ninguém ver. Chame todos os seus
ajudantes, vou ensiná-los a manejá-las.
O rapaz avisou a esposa e
voltou. Nesse meio tempo, o grupo já estava preparado para partir. Pegou pentes
de balas e os colocou num sacolão, falando para Gat trancar o compartimento.
Todos prontos, se
enveredaram por uma trilha na mata, depois de duas horas chegaram ao local. Um
lugar acidentado, sem arbustos, totalmente ermo. O guardião mandou seu pessoal
descer, o que também fez. Voltando-se para Jales:
— É aqui, se achar
conveniente.
— Ótimo! Aquela pedra
servirá de mesa, vamos até lá.
Pegando uma das armas,
mostrou a todos a forma de introdução da munição, colocando e retirando várias
vezes o pente. Depois, passou para o chefe da aldeia, que acabou fazendo a
mesma coisa. Em seguida, foi a vez dos demais integrantes do grupo. Aprendido
isto, tomou nas mãos o rifle, mandou colocar várias pedras sobre uma grande,
carregou, fez pontaria e estraçalhou uma delas. Apertou novamente o gatilho e o
segurou, varrendo as restantes.
Os homens, surdos pelos
estampidos, ficaram abobados diante do que viram.
Passou a arma para Gat, para
que fizesse a mesma coisa, dizendo para que apertasse o gatilho e o soltasse,
evitando os disparos seguidos. Recolocadas as pedras, o nativo foi perfeito,
mas acertou a grande. Os homens assustados, se encolheram. O primeiro a atirar
jogou fora a arma, após o estampido saiu correndo. O guardião mandou buscá-lo e
conversou com ele, acalmando-o. Colocou o fuzil em suas mãos, fazendo com que
atirasse novamente.
Aquele objeto mortal
representava para eles o poder do raio, coisa que nunca podiam imaginar
existir. Não conheciam sequer a pólvora, como então poderiam entender o que
estava acontecendo? Somente o chefe deles se mostrava tranquilo.
Jales, percebendo a
situação, interrompeu o treinamento e pediu para se aproximarem, auxiliado por
Gat, explicou:
— As armas que vocês
conhecem são feitas de ferro?
— Sim!, foi a resposta.
— E antes de conhecerem o
ferro, do que eram feitas?
— De madeira e pedras.
— Bem, então alguém derreteu
pedras que fazem o ferro, não é verdade? Não esperou resposta, continuou:
Da mesma forma que
inventaram armas e ferramentas utilizando o ferro, no futuro vão descobrir
outros metais e vão inventar uma infinidade de coisas. De onde vim, os homens
começaram fazendo os mesmos objetos que vocês conhecem, milhares de anos
passaram e eles continuaram a desenvolver, sempre construindo coisas novas.
As armas que providenciei não
possuem nada de sobrenatural, apenas estão pegando num objeto que um dia irão
construir, tanto quanto aconteceu com minha gente.
Há razão para se assustarem,
mas se quiserem por um paradeiro nas agressões, deverão pegar nisto como se
fossem suas espadas. Consegui que me enviassem porque serão usadas para
permitir paz na aldeia, não para fazer guerra ou matar inocentes.
Dito isto, Jales continuou a
instrução. Deixando o guardião orientar seus comandados, ficou como supervisor.
Aos poucos, os homens foram
perdendo o medo e começaram a se preocupar com a pontaria.
Durante cinco dias, voltaram
ao campo de tiro e ficaram capacitados. Prontos para receber Colon, que desta
vez, com certeza encontraria resistência.
Mais três meses se passaram,
o casal era super estimado. O curandeiro vivia a procurar Jales e tornaram-se
amigos, tanto quanto Gat, até o velho Skan os visitava com frequência. Os
habitantes da Vila haviam entendido as mensagens, compreenderam que deveriam
estar preparados para quando as inundações começassem.
Ainda faltavam alguns meses
para completar o tempo de permanência deles naquela aldeia, provavelmente no
final de um ano seguiriam para outra. Isto trazia preocupações aos aldeões, que
não queriam ficar sem os terrestres.
Estavam no inverno, a neve
branqueava o teto das casas. Há mais de dois anos que o último ataque do bando
de Colon havia acontecido, o medo de uma nova investida havia diminuído. A
preocupação ocorrida a poucos meses, dava lugar a uma certa tranquilidade,
quando houve rumores de que estavam por perto.
Gat imediatamente organizou a guarda,
distribuindo fuzis e munições. Encarapuçados, montados nos conis, passaram a
patrulhar dia e noite o vilarejo. Conseguira voluntários para funcionar como
sentinelas e os distribuiu na região.
A tática dera certo, ficou
sabendo que estavam vindo do sul por estradas e trilhas próximas do mar. O
guardião não esperou, conseguiu mais três auxiliares, formando um contingente
de dez, incluindo ele. Providenciou provisões e partiu.
Seguiram pela longa praia
até alcançarem o início das trilhas que entravam na floresta. Abrindo picadas,
encontraram estreita estrada. Caminharam por ela durante todo um dia, ao
anoitecer Gat deu sinal de parada. Passaram a noite em meio às grandes arvores,
sob frio intenso, não acenderam fogo, para não alertar o bando.
Ainda muito cedo, retornaram
ao caminho, com muito cuidado. Na metade do dia, ouviram ruídos e vozes.
Desceram dos animais, pegaram os rifles e sorrateiramente foram aproximando do
local.
Por entre os arbustos, viram
os estúpidos homens, um número grande, espalhados a volta de uma fogueira.
Mulheres cativas os serviam. Gat dirigindo-se aos homens em voz baixa, disse:
— Chegou a hora pessoal! Não
quero nenhuma mulher morta, cuidado também com alguma criança. Vamos cercá-los,
mas nada façam sem o meu sinal, darei o primeiro tiro.
Colon e seu grupo não sabiam
o que estava acontecendo, o barulho dos tiros descontrolaram os selvagens que
um a um iam tombando, perfurados por dardos que não viam.
Metade deles jaziam por
terra quando viram os atacantes, Colon reconheceu o chefe da Vila e de lança em
punho correu em sua direção para trespassá-lo, mas quando manejava a pontiaguda
arma, seu peito sangrou pelas certeiras balas. Apavorados, poucos deles
conseguiram fugir. Os guardas iam persegui-los, mas Gat os parou dizendo:
— Deixe-os ir, outros bandos
ficarão sabendo o que aconteceu, não atacarão Talma.
Diante das malvadezas,
mereceram o castigo, foram aniquilados.
O Guardião acalmou as
mulheres que se encolhiam desesperadas, dizendo que nada aconteceria a elas. Ao
todo eram quinze, de várias idades, haviam sido sequestradas. Estavam
assustadas, mas libertas do odioso grupo.
Enterraram os corpos e
tomaram o caminho de retorno. Aproveitando os Conis dos bandidos, num grupo
colocaram os produtos de roubos e noutro as mulheres.
Ao entrarem na Vila,
sentiam-se vencedores de uma batalha. Com alguns disparos, fizeram-se anunciar.
Assustados, homens, mulheres e crianças foram para o centro da aldeia.
Quando souberam do ocorrido,
providenciaram uma grande festa para seus salvadores. Beberam e dançaram até
altas horas da noite, numa alegria que se justificava pela agonia de meses a
esperar pelo pior.
Gat em nenhum momento quis a
glória para si, fez questão de apresentar Jales como o responsável pelo sucesso
do feito.
Naquela noite o casal
dispensou a reunião e participou dos festejos. Algumas famílias acolheram as
mulheres, na maioria traumatizadas. Na primeira oportunidade seriam levadas
para as vilas que pertenciam.
Quando a população acordou,
o sol de Marino já estava alto. O Guardião foi a casa do terrestre chamá-lo.
Levando Jales onde estava a caixa que viera com as armas, mostrou-lhe que todas
estavam dentro, junto com o restante da munição. Fechou a tampa e a amarrou com
correntes. Retirando grandes tábuas do assoalho e envolvendo a caixa em grossos
panos, pediu ajuda ao moço para depositá-la no buraco. Recolocou as pesadas
pranchas, depois voltando para o amigo disse:
— Entendi porque elas só
deverão ser usadas em casos extremos. Espero nunca retirá-las deste local. Nem
meus homens sabem onde estão. Com isto, acredito cumprir o que prometi.
— Fez certo, isto evita que
caiam em mãos erradas.
Depois de trocarem mais
algumas ideias, Gat foi cuidar de seus afazeres e Jales voltou para sua casa.
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