domingo, 5 de outubro de 2014

OS PRIMEIROS CONTATOS


Na Vila Talma o jovem casal se preparava para a primeira reunião com os habitantes, Burin escolhera o anoitecer.
Durante o dia, Jales e a esposa, levaram equipamentos para a maior construção da Vila, situada bem no centro. Sob os curiosos olhares dos moradores e acompanhados por grupos de crianças, transitaram o dia todo. Acenaram para homens e mulheres e foram correspondidos. Fora muito boa a presença de ambos em meio aos aldeões. Gat, sempre junto, fez questão de oferecer ajuda nos arranjos.
O sol estava baixo, se punha na direção do mar, quando os primeiros casais já se faziam presentes na pequena praça, acompanhados de filhos e parentes. Gente de toda idade ia formando uma pequena multidão. Os terrestres ficaram preocupados, não esperavam aquele grande volume de pessoas, não caberiam no recinto. Foram então conversar com o Skan, fazendo-o entender que o local era pequeno, teriam de iniciar ao ar livre. Este compreendeu e chamou o povo para as laterais do prédio. Gat e os auxiliares ajudaram na remoção das caixas e montagem de um estrado, com suportes para o telão. O tempo não estava muito frio, pois já era verão.
Tudo pronto, Burin começou:
— Meu povo, vamos ver coisas muito estranhas, não se assustem, elas provêm de máquinas criadas por homens muito adiantados. Este casal é igual a nós, apenas não possuem a mesma quantidade de pelos que temos e falam outra língua, está aqui para nos orientar. Não vieram da região dos espíritos, mas de uma cidade que fica no alto, onde muitos de nossos filhos foram estudar.
Falou ainda durante algum tempo, depois deu sinal a Jales para entrar em cena. Este ligou o som. Como havia treinado, disse na mesma linguagem:
— Estamos aqui para mostrar como é seu mundo e como é a natureza. Antes, quero agradecer a hospitalidade de vocês e apresentar minha esposa Júlia. Meu nome é Jales, vão nos ver muitas vezes. Estão me ouvindo alto porque liguei uma máquina de som, agora vou ligar outra que produzirá imagens, prestem atenção em tudo, é muito importante.
A multidão não entendia porque estavam ouvindo tão alto o jovem. Mais estarrecida ainda quando a grande tela ficou clara e logo uma mensagem escrita permaneceu durante algum tempo, repetindo a mesma orientação de que tudo era produzido por máquinas.
Em narração simples e clara, sob um fundo musical, as aldeias, campos, vales, florestas, iam sendo mostradas.
— Agora vejam, vamos subir um pouco, a vila continua lá, bem menor porque ficamos mais distantes. Podem ver até outras vilas mais próximas e os caminhos...
Muito devagar e com muito cuidado para que não houvessem dúvidas, o filme foi mostrando o planeta, até transformar-se numa bola, depois o retorno até a aldeia e novamente o distanciamento um pouco mais rápido. Quando novamente o astro apareceu inteiro, o filme foi fixado e uma pergunta em letras grandes apareceu: — VOCÊS ENTENDERAM?
Jales, tomando o microfone perguntou diretamente ao público:
Peço levantarem os braços todos que entenderam a mensagem, disse na língua nativa.
Um terço dos presentes levantaram os braços, confirmando.
— Vou repetir o filme, para que tornem a prestar a atenção.
Novamente foram repetidas as mesmas cenas e Jales voltou a pedir a mesma coisa, o resultado foi melhor, mais da metade confirmou haver entendido.
O instrutor desligou a projeção e chamou o Skan, fazendo-o entender que por aquela noite havia terminado. O chefe religioso compreendeu e dispensou a população, convidando para voltarem dali a dois dias. Estranhou e ao mesmo tempo ficou satisfeito, quando percebeu que sua voz também alcançara a todos.
A aparelhagem foi retirada e guardada na “igreja”. Gat ajudara novamente o jovem a transportar as peças, disse que havia gostado muito da exibição e que entendera. O Skan estava aliviado, sorria, temia não correr bem, mas surpreendera-se.

No dia seguinte era folga, Jales ia aproveitar para fazer uma visita ao curandeiro. Júlia levantara-se e muito disposta, organizava a pequena casa auxiliada pelo marido. Estavam nessa tarefa quando bateram a porta, o homem dissera qualquer coisa, mas não entenderam, então por gestos mostrou o interior e o compartimento do “sanitário”. Viera buscar o fétido vasilhame, levando-o junto com outros num carrinho de mão.
— Foi bom ter vindo, não sabia como fazer, disse Jales à mulher.
— Veja Jales, quanta roupa suja, mostrando a grande mala formada. Vou esperar esquentar um pouco e vou acompanhar as mulheres levando roupas, devem ir a algum lugar para lavá-las.
Assim dito, assim feito, passado algum tempo, Júlia pegou um recipiente com detergente e o colocou em meio aos encardidos panos. Fez uma trouxa e se pôs a seguir as mulheres da vila. No caminho cumprimentou uma e outra que a olhavam com jeito inibido. Atravessou um pequeno bosque e se viu num descampado, onde a relva verde cobria vasto terreno. Sobre ela muitas peças estavam estendidas. Continuando a trilha, foi escutando o vozerio incompreensível das donas de casa, conversavam enquanto esfregavam roupas a beira de um rio.
Júlia não possuía jeito para aquilo, nunca havia lavado qualquer pano, tudo sempre fora colocado em máquina. Mas necessitava aprender. Ficou olhando disfarçadamente como faziam, eram muito rápidas. Uma das mulheres que estava perto, vendo a dificuldade da moça, se aproximou e mostrou como devia fazer. Agradeceu e acabou por lavar toda roupa.
Era uma situação que não estava nos planos, mas muito oportuna pois durante todo o dia trocou algumas palavras com Lita, uma de suas vizinhas. As duas acabaram voltando juntas, com mais duas meninas, uma de seis e outra de 3 anos, filhas da nativa.
  
Jales abriu a caixa de medicamentos que trouxera, retirando dela um dos estojos completos de pronto socorro. Fez um pacote juntando tudo que poderia ser útil, e dirigiu-se para a casa do curandeiro.
Estava em seu posto e atendia uma paciente, quando o terrestre chegou. Fez menção de atendê-lo, mas este por sinal indicou que cuidasse da enferma. Jales surpreendera-se, não era o velho que esperava, mas um jovem com no máximo vinte anos. Enquanto esperava, sentou-se em uma banqueta e examinou o ambiente. Prateleiras atingiam até o teto, numa parte vasilhames de vidro e de cerâmica lotavam os compartimentos, naturalmente com produtos químicos ou poções preparadas. Noutra, separadas em quadros, grande variedade de ervas medicinais. Uma pequena cama de madeira, objetos cirúrgicos rudimentares mas aparentemente eficientes cobriam uma mesa. Notou muita limpeza e organização, inclusive na roupa que vestia. Ao fundo, um fogão laborava, fervendo água. Quando a doente saiu, pegou os instrumentos que utilizara e os colocou no caldeirão, retirando-os após com uma pinça.
Antes de atender Jales, lavou as mãos. A conversa fora melhor do que esperava, durou horas. Nos longos dias de viagem havia aprendido algumas expressões que associadas às do ensino na astronave, davam para um diálogo entrecortado.
O rapaz era inteligente, muito mais do que pensava, assimilava quase tudo. Ficou extremamente contente com os objetos e os medicamentos, presentes que foram previamente preparados, com detalhadas explicações ao alcance do curandeiro.
Jales ganhara mais um amigo. Voltou contente para casa e sentiu-se feliz ao ver Júlia alegre por ter se relacionado com as vizinhas. Lita acabou passando o dia com ela e a levara para conhecer as amigas.

Nos dias que se sucederam, o casal acertou com o Skan a reunião dos aldeões. Primeiro, não seria necessário a presença de crianças, segundo, os habitantes foram distribuídos em grupos e as instruções passaram a ser dentro do templo.
Aos poucos, os nativos foram entendendo as mensagens. Jales e Júlia se revezavam, cada dia era um que ministrava os ensinamentos, auxiliados pela aparelhagem.
O casal se habituara com a localidade e os da vila com eles. Depois de três meses já estavam entrosados com o modo de viver.
A saudade da cidade espacial era compensada pelas belezas naturais e pelo mar com suas límpidas águas a cobrir as areias da praia. O raiar da grande estrela era um espetáculo sem par no horizonte. O amor que os enlaçavam completava a falta dos benefícios da modernidade.

Nem tudo era paz e harmonia, o povo da aldeia vivia com medo, quando não era a guerra que ceifava vidas, era o banditismo que imperava na região, originado nas épocas de fome. Segundo os moradores, a princípio roubavam os poucos alimentos que possuíam. Depois ouro e tudo que representasse valor. Na última vez, foi o bando de Colon com mais de trinta homens. Armados com espadas, lanças e barretes de ferro, entraram saqueando e matando. Estupraram mulheres e quando saíram, um rastro de sangue e sofrimento ficou marcando a pacata vila. Gat tentou resistir com alguns comandados, ficou ferido e perdeu três auxiliares, além de uma filha tomada a força pelo próprio chefe do bando.
Jales confirmou o fato com o guardião e passou a pensar numa forma de ajudar e ao mesmo tempo evitar risco para o treinamento. Assim, numa das noites, após voltar da reunião, resolveu ligar o comunicador:
— Fale Jales, aqui é Jansen.
O jovem explicou detalhadamente a situação, pedindo orientação e ajuda.
— Temos problemas semelhantes em duas outras vilas, vou me comunicar com Regis e o Tenente, provável lhe enviarmos algum material bélico. Entre em contato novamente amanhã, para confirmação.
Jales comentou o assunto com Júlia, que já conhecia por informação de suas amigas. Na lavagem de roupas, o diz que diz era o dia todo, quando não estavam correndo atrás das crianças estavam fofocando. Ficou sabendo que duas das mulheres estupradas perderam a fala. Conheceu viúvas que viviam a maldizer os bandidos. Falando ao marido, disse:
— Vamos ter que ficar atentos com os equipamentos, teremos de mantê-los escondidos.
— Vamos é ter que por fim em suas ações, já falei com Jansen, é provável que nos enviem algumas armas.
— Jales, nunca peguei numa coisa dessas.
— Amanhã vou saber a decisão e receber instruções, é melhor esperarmos.
Mas, mudando de assunto. Nosso trabalho parece que vai bem. Entendem com facilidade. Ficaram preocupados depois que mostramos o que vai acontecer no futuro.
Os dois ficaram dialogando por algum tempo e foram dormir.

No dia seguinte, novamente a noite, Jales voltou a acionar o comunicador, Jansen atendeu e pediu que aguardasse um pouco. Passado alguns instantes, voltou e disse:
— Falei com Regis e fizemos uma reunião. A decisão foi a seguinte: não podemos permitir qualquer falha no programa, esses bandidos são perigos reais. Teremos de exterminá-los.
— Mas como vou fazer isto Jansen.
— Não terminei. Você não fará nada, o guardião e seus homens é que agirão. Vamos lhe enviar alguns rifles e munição. Deixaremos uma caixa na praia amanhã, fale com o chefe local e entregue a ele. Depois vá a algum lugar afastado e mostre como usar.
Boa sorte, desligo.

Jales encontrou Gat num tipo de taberna, estava perto do balcão sorvendo uma bebida. Sentaram-se em um canto, junto a uma tosca mesa.
Muito atencioso, o forte homem, com o copo ainda na mão ofereceu ao moço, que agradeceu.
— Voltando ao assunto que conversamos a alguns dias, gostaria de saber se você gostaria de uma ajuda para acabar com o bando de Colon.
— Claro, você tem aquela arma que salvou a vida de meu auxiliar, quando matou aquela fera.
— Não é bem isto Gat. Expliquei a situação para meus chefes. Amanhã cedo, na praia chegará uma caixa com armas que fazem a mesma coisa.
Os olhos do guardião brilharam, até se aproximou do moço, percebera onde queria chegar. No íntimo queria vingar a morte dos companheiros e a desgraça da filha. O que ouvia ia ao encontro de suas intenções. Nervoso, não conseguindo segurar, comentou:
— Se tivesse um tipo de arma dessas, enfrentaria todo grupo.
— É isto que vai ter e também seus auxiliares. Preciso de ajuda para transportar a encomenda. Ficará sob sua responsabilidade, a guardará num quarto forte. Mais tarde, vou mostrar-lhe e a seus homens como é o manejo delas, vou ensiná-los até não terem mais dúvidas, mas quando o bando chegar não vou participar da ação.
Uma coisa deve ficar bem clara e conto com sua promessa, após o uso deverão guardá-las e somente retirá-las em situação muito especial, como no caso desses homens que trucidam inocentes sem piedade.
— Prometo sob minha palavra, farei conforme me pede.
Um enorme sorriso surgiu no rosto severo do homem da lei; vinha estudando a tempos uma forma de reprimir os bandidos, mas não podia contar com os homens da vila, apenas se dedicavam a pescar, plantar e colher os frutos. Alguns haviam participado de batalhas na guerra, mas não estavam adestrados para enfrentar bandidos. Sua guarda era de apenas seis auxiliares, sempre ocupados em resolver pequenas brigas.
Fez questão que o rapaz tomasse o tipo de vinho que era servido no lugar.
Enquanto bebia, Jales fez uma observação:
— Seria bom não comentar nada sobre isto e pedir o mesmo para seus comandados, a notícia pode se espalhar. Se ficarem sabendo, poderão agir de surpresa ou em horários que estamos dormindo.
— Você tem razão Jales, é preciso manter segredo.
— Outra coisa, para evitar ferimentos nos habitantes, seria bom manter vigias ou informantes para avisarem da aproximação deles. Seria oportuno atacá-los antes de chegarem a aldeia.
Continuaram conversando por bom tempo. Gat revelou ao amigo que era casado, que seus filhos eram quatro, dois homens casados e duas filhas solteiras, sendo que uma delas estava perturbada por ter sido estuprada por aqueles facínoras.
Quando voltou para casa, já escurecia e se aproximava da hora do treinamento, Júlia estava impaciente e não se mostrou nada tolerante:
— Precisava ficar na taberna tanto tempo?
— Meu bem, Gat me segurou na conversa.
— Na conversa ou na bebida? Você está exalando álcool!
Realmente o moço sentia-se um pouco aéreo, não percebera que havia ingerido a boa bebida um pouco além do que deveria.
Naquela noite era a mulher que instruiria o pessoal.
Para evitar discussão, prometeu que não tornaria a exagerar e que ela tinha razão.

— — —
  
Na grande aldeia Vale Verde, sede do Reino Sumano, Tropo passava a maior parte do tempo com Vina. Imitando Sato, diminuiu as andanças e começou a coordenar as províncias de seu Forte. Sem guerra, a vida era tranquila. Autodidata, conseguiu traduzir os livros dos terrestres. Passo a passo, se inteirava da vida dos humanos. Duas horas por dia, ensinava seus auxiliares diretos e participava de todas as reuniões do casal destinado para aquela “cidade”. Inclusive, ajudava os terráqueos a orientar seu povo.
Jasun, ligado aos princípios antigos, encontrava dificuldades para entender. O Rei era paciente e queria que o amigo ficasse a par das mudanças que iriam ocorrer. O velho homem se irritava, dizia estar velho para aprender, mesmo assim, com muito custo, conseguiu assimilar alguns ensinamentos.
Tropo não comentava, muito astuto, no seu íntimo temia o domínio daquela raça que estava sobre sua cabeça. Para entender as reais intenções dos homens da cidade espacial, se esforçava ao máximo para compreendê-los. Pensava:
— Se ele e o grupo de conselheiros conhecessem com profundidade a língua, os costumes e a capacidade dos terráqueos, no futuro as decisões poderiam ser tomadas com firmeza.
Vina, era uma verdadeira Rainha, dominadora pela altivez de seus modos, com isto afastava a criadagem, mas não era orgulho. Passava a maior parte do tempo com os livros, igual ao marido, também possuía um objetivo, entender os filhos e auxiliar o Rei. Neste particular, fora mais inteligente, logo que Miriam e Charles iniciaram o treinamento e se instalaram na Vila, foi visitá-los. No correr dos dias, tornou-se amiga de Miriam e numa tarde, disse que poderia ensiná-la a falar com o povo, por sua vez, desejava aprender a língua dos terrestres. A insinuação agradou a ambas, dali em diante começaram a ser professoras mútuas.

Naquele início de processo educativo, os problemas não estavam na cidade espacial, mas na superfície, não existia uma homogeneidade dos costumes, variavam de região para região. Em alguns lugares tomaram os casais por enviados divinos, dificultando a compreensão inicial. Em outros, grupos radicais, achando-os intrusos, obrigaram os guardiões a tomarem medidas severas. Numa das aldeias nogolanas, chegaram a ferir o instrutor, cumprindo a lei o agressor foi executado. De qualquer forma, após os primeiros meses, as ocorrências diminuíram, não zeraram devido aos bandos de malfeitores que atacavam as vilas.
Regis e os demais membros da Central mudaram suas vidas, desde que abraçaram a execução do projeto. A responsabilidade era muito grande, mesmo dividida entre eles.
A equipe de Jansen trabalhava dia e noite na escuta dos chamados, era comum comunicações diárias. Muitas poderiam ser evitadas, mas outras geravam providências.
Alguns casais direcionados para áreas muito frias, tiveram problemas de saúde e foram removidos para lugares menos desfavoráveis. Contrariando as regras, dois voltaram para a astronave, por não conseguirem se adaptar aos costumes e foram substituídos. Os soldados também foram retirados. A ação através de pequenas naves passou a ser o melhor caminho, embora o dispêndio de combustível.
Quanto ao ensino interno, tudo corria bem, Corin se revelara um excelente coordenador escolar, junto com a esposa.

Enquanto o trabalho de conscientização coletiva se processava por coordenação na Roda e execução em solo, Jales e Júlia cumpriam sua parte com máximo empenho.
Jales, mal dormira naquela noite, preocupado levantou e abriu a janela, por coincidência, justo no momento da aterrissagem da nave. O barulho fora grande, devendo ter apavorado os moradores. Por alguns minutos o silêncio voltara, novamente o estrondo da partida e rápida ascensão quebraram a monotonia do ambiente.
Clareava o dia e o jovem bem agasalhado se pôs a caminho da praia, não percebendo que três homens também se dirigiam para o local. Logo que chegou, viu a caixa que parecia bem pesada. Estava aproximando dela quando Gat e seus homens apareceram. Dois auxiliares pegaram a mesma e os quatro voltaram para o centro da Vila. Dirigiram-se para uma forte casa, residência de Gat e sede da guarda. Este abriu uma porta grande que dava para a pequena rua e a depositaram no centro do cômodo.    
Jales, sob a luz de archotes, depois de livrar-se das travas, abriu a tampa e retirou de dentro dez fuzis, munições e um envelope endereçado a ele, contendo instruções. Voltando-se para o Guardião, disse:
— Vou até minha casa avisar Júlia que ficarei o dia fora. Enquanto isto, escolha um local distante da vila para irmos, enrole as armas em panos para ninguém ver. Chame todos os seus ajudantes, vou ensiná-los a manejá-las.
O rapaz avisou a esposa e voltou. Nesse meio tempo, o grupo já estava preparado para partir. Pegou pentes de balas e os colocou num sacolão, falando para Gat trancar o compartimento.
Todos prontos, se enveredaram por uma trilha na mata, depois de duas horas chegaram ao local. Um lugar acidentado, sem arbustos, totalmente ermo. O guardião mandou seu pessoal descer, o que também fez. Voltando-se para Jales:
— É aqui, se achar conveniente.
— Ótimo! Aquela pedra servirá de mesa, vamos até lá.
Pegando uma das armas, mostrou a todos a forma de introdução da munição, colocando e retirando várias vezes o pente. Depois, passou para o chefe da aldeia, que acabou fazendo a mesma coisa. Em seguida, foi a vez dos demais integrantes do grupo. Aprendido isto, tomou nas mãos o rifle, mandou colocar várias pedras sobre uma grande, carregou, fez pontaria e estraçalhou uma delas. Apertou novamente o gatilho e o segurou, varrendo as restantes.
Os homens, surdos pelos estampidos, ficaram abobados diante do que viram.
Passou a arma para Gat, para que fizesse a mesma coisa, dizendo para que apertasse o gatilho e o soltasse, evitando os disparos seguidos. Recolocadas as pedras, o nativo foi perfeito, mas acertou a grande. Os homens assustados, se encolheram. O primeiro a atirar jogou fora a arma, após o estampido saiu correndo. O guardião mandou buscá-lo e conversou com ele, acalmando-o. Colocou o fuzil em suas mãos, fazendo com que atirasse novamente.
Aquele objeto mortal representava para eles o poder do raio, coisa que nunca podiam imaginar existir. Não conheciam sequer a pólvora, como então poderiam entender o que estava acontecendo? Somente o chefe deles se mostrava tranquilo.
Jales, percebendo a situação, interrompeu o treinamento e pediu para se aproximarem, auxiliado por Gat, explicou:
— As armas que vocês conhecem são feitas de ferro?
— Sim!, foi a resposta.
— E antes de conhecerem o ferro, do que eram feitas?
— De madeira e pedras.
— Bem, então alguém derreteu pedras que fazem o ferro, não é verdade? Não esperou resposta, continuou:
Da mesma forma que inventaram armas e ferramentas utilizando o ferro, no futuro vão descobrir outros metais e vão inventar uma infinidade de coisas. De onde vim, os homens começaram fazendo os mesmos objetos que vocês conhecem, milhares de anos passaram e eles continuaram a desenvolver, sempre construindo coisas novas.
As armas que providenciei não possuem nada de sobrenatural, apenas estão pegando num objeto que um dia irão construir, tanto quanto aconteceu com minha gente.
Há razão para se assustarem, mas se quiserem por um paradeiro nas agressões, deverão pegar nisto como se fossem suas espadas. Consegui que me enviassem porque serão usadas para permitir paz na aldeia, não para fazer guerra ou matar inocentes.
Dito isto, Jales continuou a instrução. Deixando o guardião orientar seus comandados, ficou como supervisor.
Aos poucos, os homens foram perdendo o medo e começaram a se preocupar com a pontaria.
Durante cinco dias, voltaram ao campo de tiro e ficaram capacitados. Prontos para receber Colon, que desta vez, com certeza encontraria resistência.

Mais três meses se passaram, o casal era super estimado. O curandeiro vivia a procurar Jales e tornaram-se amigos, tanto quanto Gat, até o velho Skan os visitava com frequência. Os habitantes da Vila haviam entendido as mensagens, compreenderam que deveriam estar preparados para quando as inundações começassem.
Ainda faltavam alguns meses para completar o tempo de permanência deles naquela aldeia, provavelmente no final de um ano seguiriam para outra. Isto trazia preocupações aos aldeões, que não queriam ficar sem os terrestres.
Estavam no inverno, a neve branqueava o teto das casas. Há mais de dois anos que o último ataque do bando de Colon havia acontecido, o medo de uma nova investida havia diminuído. A preocupação ocorrida a poucos meses, dava lugar a uma certa tranquilidade, quando houve rumores de que estavam por perto.
 Gat imediatamente organizou a guarda, distribuindo fuzis e munições. Encarapuçados, montados nos conis, passaram a patrulhar dia e noite o vilarejo. Conseguira voluntários para funcionar como sentinelas e os distribuiu na região.
A tática dera certo, ficou sabendo que estavam vindo do sul por estradas e trilhas próximas do mar. O guardião não esperou, conseguiu mais três auxiliares, formando um contingente de dez, incluindo ele. Providenciou provisões e partiu.
Seguiram pela longa praia até alcançarem o início das trilhas que entravam na floresta. Abrindo picadas, encontraram estreita estrada. Caminharam por ela durante todo um dia, ao anoitecer Gat deu sinal de parada. Passaram a noite em meio às grandes arvores, sob frio intenso, não acenderam fogo, para não alertar o bando.
Ainda muito cedo, retornaram ao caminho, com muito cuidado. Na metade do dia, ouviram ruídos e vozes. Desceram dos animais, pegaram os rifles e sorrateiramente foram aproximando do local.
Por entre os arbustos, viram os estúpidos homens, um número grande, espalhados a volta de uma fogueira. Mulheres cativas os serviam. Gat dirigindo-se aos homens em voz baixa, disse:
— Chegou a hora pessoal! Não quero nenhuma mulher morta, cuidado também com alguma criança. Vamos cercá-los, mas nada façam sem o meu sinal, darei o primeiro tiro.

Colon e seu grupo não sabiam o que estava acontecendo, o barulho dos tiros descontrolaram os selvagens que um a um iam tombando, perfurados por dardos que não viam.
Metade deles jaziam por terra quando viram os atacantes, Colon reconheceu o chefe da Vila e de lança em punho correu em sua direção para trespassá-lo, mas quando manejava a pontiaguda arma, seu peito sangrou pelas certeiras balas. Apavorados, poucos deles conseguiram fugir. Os guardas iam persegui-los, mas Gat os parou dizendo:
— Deixe-os ir, outros bandos ficarão sabendo o que aconteceu, não atacarão Talma.
Diante das malvadezas, mereceram o castigo, foram aniquilados.
O Guardião acalmou as mulheres que se encolhiam desesperadas, dizendo que nada aconteceria a elas. Ao todo eram quinze, de várias idades, haviam sido sequestradas. Estavam assustadas, mas libertas do odioso grupo.
Enterraram os corpos e tomaram o caminho de retorno. Aproveitando os Conis dos bandidos, num grupo colocaram os produtos de roubos e noutro as mulheres.
Ao entrarem na Vila, sentiam-se vencedores de uma batalha. Com alguns disparos, fizeram-se anunciar. Assustados, homens, mulheres e crianças foram para o centro da aldeia.
Quando souberam do ocorrido, providenciaram uma grande festa para seus salvadores. Beberam e dançaram até altas horas da noite, numa alegria que se justificava pela agonia de meses a esperar pelo pior.
Gat em nenhum momento quis a glória para si, fez questão de apresentar Jales como o responsável pelo sucesso do feito.
Naquela noite o casal dispensou a reunião e participou dos festejos. Algumas famílias acolheram as mulheres, na maioria traumatizadas. Na primeira oportunidade seriam levadas para as vilas que pertenciam.
Quando a população acordou, o sol de Marino já estava alto. O Guardião foi a casa do terrestre chamá-lo. Levando Jales onde estava a caixa que viera com as armas, mostrou-lhe que todas estavam dentro, junto com o restante da munição. Fechou a tampa e a amarrou com correntes. Retirando grandes tábuas do assoalho e envolvendo a caixa em grossos panos, pediu ajuda ao moço para depositá-la no buraco. Recolocou as pesadas pranchas, depois voltando para o amigo disse:
— Entendi porque elas só deverão ser usadas em casos extremos. Espero nunca retirá-las deste local. Nem meus homens sabem onde estão. Com isto, acredito cumprir o que prometi.
— Fez certo, isto evita que caiam em mãos erradas.

Depois de trocarem mais algumas ideias, Gat foi cuidar de seus afazeres e Jales voltou para sua casa.

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