domingo, 5 de outubro de 2014


A VOLTA DAS CRIANÇAS E RETORNO DOS PROFESSORES.
A GRANDE IDEIA DE CHATO.

No Reino dos Nogos, Tat após ter visitado a amiga, encontrara o caminho a seguir. Aprendera com Vina como entender os escritos dos humanos. Desde então, aos poucos traduzia revistas e livros. Muito inteligente, assimilava com facilidade os ensinamentos. Não perdia uma reunião dos terráqueos, enquanto Sato viajava, desde que voltara do encontro na Roda. Longe do que pensava a esposa, não estava alheio aos fatos, apenas direcionava sua capacidade para soluções futuras. Num compartimento especial acumulava seus desenhos topográficos. Ele que após a guerra dificilmente se locomovia para o interior de seu país, passou a fazer incursões longínquas em direção às áreas geladas. Alheio aos problemas políticos, fincava estacas com marcações do nível de gelo, fazia o mesmo em rios e lagos. Conversava com habitantes da região, principalmente idosos, anotando áreas que estavam livres e que há muitos anos antes eram cobertas pelo manto branco.
Bem protegido, com um grupo de guias, usando trenós puxados por auruns, enveredou por regiões onde somente as geleiras dominavam. Viu o perigo, grandes trincas formando abismos, sinais de desmoronamentos e até locais livres.
Em meio àqueles lugares, desenhava rapidamente, marcava setores e entregava as folhas para um auxiliar. Não perdia nenhum detalhe, tudo registrava.
De volta a Catun, baseado em suas anotações, traçou linhas no mapa de seu território, unindo os vários pontos onde esteve.
Pela primeira vez chamou Tat para expor o que fazia e de certa forma justificar suas viagens demoradas.
— Quero que tome conhecimento de uma coisa. Sente-se e me ouça, indicando-lhe a grande cadeira a frente de sua mesa.
— Do que se trata Sato?
— Os homens lá de cima estão certos. Fui às grandes geleiras do norte e do sul, estão derretendo. As terras do Reino estão aumentando. Em compensação, a água desprendida é grande, aumentaram o volume dos rios e estão formando lagos.
— Veja no mapa que elaborei, houve um aumento tanto ao norte quanto ao sul do território livre.
— Mas como pode saber, vai me dizer que andou em tudo isto.
— Não Tat. Dois ou três pontos de penetração em locais distantes, bastam para a comparação e posicionamento do restante.
Não possuo a sabedoria daqueles homens, mas o que me preocupa é que poderemos ter muito menos tempo do que os vinte anos que disseram.
— Nada entendo do que faz, mas se há tanto perigo para nós, o mesmo acontece para o país de Tropo. Fale com ele, use o aparelho de comunicação e converse com os homens do céu.
— Tem razão, vou agora mesmo para Vale Verde.
Tat ficou pensativa, enquanto observava o marido sair e chamar os guardas para acompanhá-lo.

Tropo examinou as várias folhas, comentando:
— Fez um excelente trabalho Sato.
Seria oportuno que enviasse a Regis. Eles tem aparelhagem para verem tudo, mas não estão aqui em baixo. O que está me mostrando, pode acelerar o que pretendem.
— É o que vou fazer logo que meus filhos voltarem.
Mas, sabendo que estavam com razão, procurei uma solução com nossos meios. Desenhei saídas de emergência para muitas vilas, mas acabei desistindo. Sem a ajuda deles vai ser impossível escaparmos.
Tropo, com isto confirmei a não intenção de nos dominar, mas realmente de nos ajudar. É mais que necessária a orientação coletiva que fazem.
— Você me surpreende, pensava que estivesse indiferente ao trabalho que realizam. Soube que não participa do treinamento.
— Desde que voltei de lá, viajei muito, estava justamente levantando dados para os mapas que lhe mostrei. De qualquer forma entendi onde querem chegar, vou procurar dar minha contribuição. Também, vou aparecer nas aulas.
— Desde o início tenho acompanhado as instruções, tenho até passado por professor. Frequentemente ajudo na orientação. No entanto devo lhe dizer, não deixava de ter algum receio, que agora se desfaz diante do que me disse.
— Tropo, se me permitir, gostaria de usar seu comunicador. Preciso melhor situar meus governadores, gostaria de marcar uma reunião. Vou tentar isto através de Jansen.
— Faça isto Sato, esteja a vontade, seu povo um dia vai agradecê-lo.
O Rei não esperou, foi até a caixa e acionou o botão, imediatamente Jansen atendeu. Sato perguntou se podia contar com a ajuda dos instrutores, explicando suas intenções.
O membro da Central pediu a relação das Vilas, os nomes, prometeu providências e disse para usar o mesmo procedimento quantas vezes quisesse.
— — —
Aquilo que é feito com boa intenção acaba gerando bons frutos. Os chefes das Nações tudo faziam para cuidar de seus povos.
A inesperada presença alienígena, diante do primitivismo material que viviam, não deixava de amedrontá-los. Tropo, pelo lado cultural, foi o primeiro a aderir ao projeto. Por mais que se esforçasse, se preocupava. Sua união com Sato, o rápido esquecimento da inimizade ligava-se diretamente à presença dos vizinhos do alto. O mesmo acontecia com o outro, mas este fora verificar e descobrira a realidade. Isto mudara o pensamento de ambos. Com esta confirmação, perceberam que se aqueles homens quisessem, bastariam esperar a catástrofe, depois era só se apossarem do planeta.

O tempo corria, faltando um mês para a descida das crianças e retorno dos professores, Regis reuniu seu grupo.
Era preciso coordenar, se deixassem os garotos no mesmo lugar, alguns levariam até um mês para chegarem em seus lares, quanto aos professores a mesma coisa. Para liberar vários transportadores, o gasto era grande e precisavam reservar combustíveis para o futuro. Definiram pela primeira opção.
Os Reis foram avisados da impossibilidade de descerem em vários lugares. Foram também informados que as crianças chegariam no mesmo lugar de onde partiram.
Diante do problema, já que teriam direito de permanência de apenas um mês na superfície, ficou combinado que os Reis, em comum acordo, construiriam acomodações para os pais e filhos, próximas ao campo de pouso.
Tudo acertado, Jansen se encarregou de avisar as famílias através dos instrutores e, estes por sua vez através dos guardiães. Informando também os casais sobre a partida.

Aquele primeiro ano fora um sucesso para Corin e Silas. As crianças adoravam o lugar, tanto que não estavam contentes em voltar.
O casal precisava de um descanso muito justo, até então não haviam tido um dia sem excessivo trabalho. Passariam as férias com o filho.
Silas escreveu uma longa carta para a mãe, entregou a Kiria junto com uma pequena caixa, pedindo a garota para entregá-la a um mensageiro.

O momento da partida chegara, os grupamentos infanto-juvenis, separados por idade e sexo, dessa vez, estavam curiosos. Já sabiam flutuar, se divertiam muito nas bases, entrar naqueles ônibus espaciais tornara-se motivo de alegria.
Ao contrário dos dias que precederam a partida, a garotada estava alegre. Os meninos e meninas pareciam ansiosos para rever os familiares. Vários professores estavam presentes, aproveitariam o trajeto para dar-lhes explicações diante do panorama real.
Enquanto isto, no Planeta a noite era gélida, os archotes faziam um grande círculo no local do pouso.
Numa boa distância, os pais e os casais terrestres olhavam para o alto. Deram gritos de alegria quando viram os dois pontos luminosos descerem até se transformarem, bem pertos, em grandes fornalhas e vagarosamente se apoiarem no solo.
Desligados os propulsores, forte iluminação transformou em “dia” a grande área plana. Eram os holofotes controlados pelos astronautas que desciam junto com as crianças.
Meninos e meninas, iam recebendo demorados abraços, principalmente das mães. Uma grande euforia tomou conta de todos, enquanto os casais tomavam lugares nos veículos.
Muitos instrutores tiveram de viajar dias para chegar ao local de decolagem, repetindo o trajeto de quando vieram.
O sol de Marino já despontava, quando as naves retornaram.
A metade da meninada partiu para as aldeias, a outra ficou. Boas acomodações foram construídas, os que ficaram passariam as férias ali mesmo, com o melhor que os Reis puderam fazer.
Os sorrisos estavam em toda parte, um dia de grande festa.

— — —

Salésio, único terrestre a permanecer no solo do Planeta, fizera um bom relacionamento.
Acostumado a solidão, não estranhou a ausência do casal.
Sem nada para fazer, passava os dias, ora conversando com Gat na taberna, ora andando pelos arredores, principalmente onde as lavadeiras ficavam. Naquele pouco tempo que estava na aldeia, esforçara-se muito para aprender a linguagem local, o próprio guardião o auxiliava.
Para quem o conhecesse na Cidade Espacial, se o visse não acreditaria que era o mesmo. Mudara radicalmente seu comportamento.
Muitas vezes se punha a conversar com Oda, viúva de meia idade, forte e muito simpática. Algo o impelia para aquela mulher de pernas e braços peludos, mas que não a enfeavam, pelo contrário, faziam-na exótica com os longos cabelos castanhos a se misturarem com o corpo. Uma estranha forma de beleza aliada ao rosto bem feito e olhar sereno.
Perdera o marido na guerra, logo no início do casamento. Depois disto não se interessara por mais ninguém. Criara uma filha, que se casou e lhe deu três netos. Vivia só, ganhava o sustento lavando roupas e tecendo lãs de trelos criados na região. De suas mãos saiam mantas coloridas com muito bom gosto. Recebia compradores até de lugares distantes. Possuía uma boa economia em moedas de ouro.
Numa das ocasiões em que Chato estava em suas andanças, parou perto dela, como já estava se tornando hábito, entre outras coisas, perguntou-lhe, fazendo-se entender da melhor forma que podia:
— Porque você trabalha tanto Oda?
— Acostumei a não parar, a princípio, durante muito tempo era pela solidão, gostava muito de Tanin. Depois me conformei, mas não conseguia ficar sem fazer nada.
— Fiz esta pergunta porque sei que tece e faz roupas também.
Sabe que temos uma coisa em comum. Eu também fazia roupas onde estava. Coisa que sempre gostei. Enquanto transformava panos, esquecia de meus problemas. A solidão também é minha companheira.
Depois de mais algumas palavras, Salésio se distanciou e começou a percorrer a margem do rio, olhando as águas que caiam numa pequena cachoeira. Ficou ali por muito tempo, quieto, imaginando a força da correnteza. De repente surgiu-lhe a mente os filmes que assistira sobre paisagens da Terra. De associação em associação, lembrou-se das fontes de energia elétrica. Deu até um pulo com a ideia que teve. Levantou-se e voltou depressa para casa. Entrou e foi buscar papéis para anotações, encontrou tudo que precisava.
Acostumado a fazer moldes para roupas, não foi difícil para ele desenhar um pequeno projeto de energia, aproveitando a pequena queda d’água, poderia acionar uma pequena turbina. Simples, através de uma pequena roda de madeira que poderia ser feita ali mesmo. Estenderia fiação até o centro da aldeia e colocaria algumas lâmpadas. Na roda aprendera tudo sobre eletricidade.
Sua intenção era apenas ver luz durante a noite, mas outra ideia lhe veio, por que não dar a Oda uma máquina para costurar os grossos tecidos? Ele a ensinaria.
Há cerca de um mês que constantemente pensava naquela mulher, por onde ia, a imagem dela lhe vinha a mente. Lutava para não aceitar a realidade, ainda mais na idade que estava.
— Que bobagem!, pensava. Vivia a implicar com as crianças daqui e agora estou me sentindo preso. Mais ainda, nem entendo bem os costumes deles. Tão pouco tempo. Será que estou caducando? Nem acredito em minhas novas tendências. É incrível, o pior é que estou gostando. Todos me tratam bem, estou aprendendo a conversar com eles. Me respeitam, me entendem, continuou Chato monologando, sozinho em seu pequeno quarto.
No dia seguinte, novamente lá estava ao redor de Oda. Aquilo já estava chamando a atenção, as amigas da mulher começavam a falar. Salésio não percebia e ela não via como afastá-lo, na verdade até o procurava com os olhos. Quando não vinha, ficava irritada.
Chegara cedo, queria explicar a ela suas ideias. Com muito custo conseguiu fazê-la entender que a máquina ajudaria a fazer o trabalho dela muito mais rápido, que ele a ensinaria. Nem ela mesma compreendeu porque aceitara a proposta. Fez questão de dizer que ia tentar convencer os donos de sua Vila, para enviarem-na junto com outros materiais.
Saindo dali, passou muito tempo com Gat, desenhando num papel o pequeno projeto. O Guardião, lembrando-se que a última ordem do Rei era para dar todo apoio aos terrestres, não fez objeção e disse que o auxiliaria no que fosse possível. Porém, durante a conversa, observou-lhe sobre o tempo de existência da aldeia, ao que Chato respondeu:
— Pelo menos haverá dez ou vinte anos de luz, se não fizer algo agora, depois acredito que não terei mais tempo.
— Então o senhor pretende viver aqui?
Aquela pergunta o pegou de surpresa, parou um pouco para meditar. Depois de alguns instantes, disse:
— Pretendo, se me quiserem.
Gat ficou emocionado e estendeu-lhe a mão, num aperto, para selar uma amizade.
Salésio voltou para casa e para os papéis, fez uma relação de tudo que precisava, procurando não se esquecer de nada, inclusive de um bom suprimento de linhas para a máquina, lâmpadas, peças para reposição e ferramentas manuais. Depois de tudo anotado, acionou o comunicador e transmitiu a Jansen o seu pedido, inclusive informando que ia residir definitivamente em Marino, que aquele era o único e último pedido que fazia.
Tão logo completou a solicitação, desligou o aparelho e um alívio o dominou. Há dois dias que mal dormia, assim, apenas recostou em sua cama e o sono lhe veio, profundo. Sonhou que estava com Oda, passeando sob a claridade de suas lâmpadas e alguém segurava suas calças, olha e vê um menino peludinho. Quando vai segurar a criança, acorda.
Seu estômago reclamava, não havia alimentado, tateando procurou na escuridão o archote, acendeu-o e foi para a cozinha preparar alguma coisa para comer.

Deixemos Salésio com suas fantásticas ideias e vejamos o Forte do Rei Tropo.
Jasun estava sorridente, já não aguentava de tanto esperar seus pequenos, como dizia. Kiria e Jasp, depois de estarem com os pais, se agarraram ao velho servidor, que chorou de alegria. A garota não esquecera a encomenda de Silas, entregou a caixa e a carta ao velho e pediu para que ele providenciasse um mensageiro.
O menino, irrequieto, logo foi procurar seu aurun, ficaram brincando na relva cercada pelas fortificações.
Muita felicidade no Reino, Tropo cortou todas as audiências para dedicar aos filhos. Vina queria saber tudo, nos mínimos detalhes.
Depois de uma semana de total entrega às crianças, Tropo chamou ambos para uma conversa, e para experimentá-los, muito sério perguntou:
— Vocês querem voltar para lá?
Demoraram um pouco, mas quase ao mesmo tempo responderam:
— Queremos.
— E se disser que não vou deixá-los ir.
— Papai!, o senhor não pode fazer isto!, disse Jasp, seguido pela mesma expressão da irmã.
— Não, não vou fazer, apenas os testava para ver se estavam satisfeitos naquele lugar.
— Estamos sim, aprendemos coisas que nem pode imaginar.
— Então me contem.
Assim, passaram os dias e as crianças sempre falando das maravilhas da Roda.

No Reino vizinho, as coisas não foram diferentes, deslumbrados os filhos de Sato não paravam de comentar sobre a vida na cidade espacial. Também queriam voltar.
Tat estava satisfeita com a felicidade deles. Vê-los naquela alegria era o maior presente que recebia. Suni e Kalil triplicaram os conhecimentos. Sato acabou fazendo uma sabatina geográfica com eles e se assustou com a capacidade mental adquirida por ambos. Orgulhou-se deles, pensando:
— Em todo meu Reino não devem existir crianças mais inteligentes.
Para ele, nem as que partilhavam do mesmo ensino deveriam ser tão capacitadas.
Tanto Sato, quanto Tropo estavam contentes, verem os filhos com aquele grau de conhecimento fora uma satisfação muito grande.
Querendo expandirem de alguma forma a felicidade, procuraram dar aos pais e as crianças que estavam acampadas o máximo de atenção. Mandaram distribuir alimentos e colocaram muitas pessoas para servi-los. Na maioria, eram filhos de governadores e guardiões, estes não estavam menos entusiasmados do que os Reis.

Na Roda, a Central preparou uma recepção para os casais.
A maior parte deles não via a hora de voltar, não que quisessem abandonar a missão, mas sentiam saudades do conforto e dos familiares.
Aquele mês de novembro de 4l5, marcava uma vitória, a conquista pacífica dos homens de Marino.
Regis não queria perturbá-los durante as férias, mas precisava ter um dia de conversa coletiva. Assim, convocou os seu pessoal e solicitou a presença dos instrutores.
Logo de início, perguntou se todos estavam dispostos a voltar.
Dez casais se manifestaram. Disseram haver muita violência onde estavam, preferiam ficar.
Imediatamente o Chefe da Central os dispensou e pediu para que se retirassem. Após saírem, comentou:
— Temos casais para substitui-los. Devo no entanto dizer, nunca pediram nenhum auxílio ou reclamaram.
Mas, vamos ao que interessa. Gostaria de ouvi-los, de conhecer um pouco de cada aldeia e do resultado do treinamento.
  
A conversa foi demorada, Regis escutou casal por casal durante quase todo o dia.

O único aspecto negativo do trabalho fora o abandono da missão pelos casais citados, o restante apresentou boas informações. Haviam passado por momentos difíceis, mas o resultado já se mostrava. De forma geral, os nativos haviam assimilado os ensinamentos; nas vilas nascia uma nova forma de pensar. Estavam de espírito preparado para as inundações.
Regis, após ter considerado os problemas normais e ótimo o resultado geral, informou que continuariam mais seis meses nas mesmas vilas, depois seguiriam para outras. Porém, antes de terminar, perguntou:
— Vocês conhecem o Chato?
Quase em coro, responderam:
— Quem não o conhece! Mas não vimos ele.
— Não viram porque não está mais aqui. Estava nos criando confusão com a garotada de Marino, vivia a importuná-las. Há cerca de seis meses o deportamos para lá, como castigo deveria ficar pouco mais de um ano da superfície.
Voltando-se para Jales, pediu:
 Conte para todos ouvirem, o que aconteceu.
— Bem, Salésio, quando chegou já estava modificado. Também o conhecia, passei a estranhar os modos. Já no começo, falou que os dois dias que estivera preso pensara muito, concluindo que durante toda sua vida só fizera coisas erradas, mas que ia mudar.
A princípio não acreditei, mas suas atitudes foram relevantes, passou a nos ajudar e a se relacionar com os habitantes de lá. Diariamente insistia em aprender o idioma, em pouco tempo conseguia se comunicar. Ninguém o reconheceria mais, foi uma mudança da água para o vinho.
— Pois bem, acreditem ou não, ontem recebi um extenso pedido dele. Você sabia disto Jales?, mostrando-lhe a folha de papel com toda a requisição.
— Não Senhor Regis, nunca me falou nada. Mas veja, já faz quase um mês que saí de lá.
— Pois então ouçam todos, e leu a longa lista. Continuou:
A solicitação dele é de coisas muito antigas, já mandei fazer um levantamento, temos tudo que precisa. No seu comunicado disse também ser o único pedido que faz e que deseja ficar lá para sempre. Primeiro vou fazer uma pergunta para Jales:
O que você acha? Convém lhe darmos o que pede?
— Acredito que sim, formou amizade com os aldeões. Parece estar feliz, deve ter encontrado algo que queira fazer.
— Bem, vou colocar em votação, ele está lá por castigo, é o único terrestre no planeta no momento. Levantem a mão os que apoiam o envio de tudo que pediu.
Todos sem exceção, até os membros da mesa aprovaram a remessa.
— Assim sendo, peço a Jansen avisá-lo para ir buscar o material quando voltarem, vamos aproveitar o transportador.
Os homens da Central ainda continuaram por algum tempo, esclarecendo dúvidas e acatando opiniões sobre algumas mudanças no treinamento.

Enquanto os casais descansavam, Chato ficara na expectativa da resposta. Haviam passado três dias que fizera a solicitação. Nesse período quase não saiu, se o fez foi apenas para trocar algumas palavras com Oda. Estava tão ansioso que por pouco não ligara novamente. Mas aguentou, não achava prudente. No quarto dia, já estava ficando triste, quando o pequeno sibilo do aparelho o fez correr, atendeu:
— Aqui é Jansen.
— Pode falar amigo.
— Tenho a lhe informar que seu pedido foi aceito. Você deverá ir buscar o material quando as naves descerem com os instrutores.
— Muito obrigado Jansen, agradeça Regis, diga-lhe que isto foi muito importante para mim.
Desligado o comunicador, seu coração pulava, precisou até tomar água. Não aguentava de tanta satisfação. O difícil seria esperar aqueles dias que seriam longos. Estava pensando assim, quando lembrou-se de que teria de partir de imediato. Levaria tempo para alcançar a fronteira. Quando chegasse, era certeza de que os transportadores já não estariam lá.
Estava saindo para pedir ajuda a Gat, quando teve uma ideia. Voltou e ligou o comunicador, foi ainda Jansen que atendeu:
— Jansen, uma última coisa. Posso falar com Jales?
— Vou tentar uma ligação com o apartamento onde está. Espere um pouco.
Salésio aguardou, logo o companheiro estava na linha.
— Fale Chato, o que manda?
— Preciso de um grande favor seu.
— Até acho que já sei.
— Sabe?
— Levar as mercadorias que pediu, não é?
— Isto mesmo. Como sabe?
— Regis me falou e pediu para que as fizesse chegar às suas mãos. Jansen não lhe disse?
— Não, deve ter esquecido.
— Pode ficar descansado, logo que chegar providenciarei um carregador com vários conis.
— Obrigado Jales, muito obrigado mesmo.
Chato estava contente, saltitava, desceu o degrau da porta de entrada de sua casa e caminhou depressa na direção do rio. Não encontrou Oda, sabendo onde morava, foi para a casa dela.
— Oda, eles me atenderam! Vão mandar tudo que pedi! Vamos ter luz e você a máquina que prometi.
Vendo o homem tão alegre, a mulher também sorria compartilhando daquele momento.
Depois de um bom tempo conversando com ela, foi procurar Gat, contando-lhe tudo.
O Guardião ficou muito interessado e prometeu ajudá-lo no que estivesse ao alcance, como já havia dito antes.
Ao detalhar novamente o projeto para o amigo, lembrou-se da roda de madeira e dos suportes que teriam de ser colocados sobre o rio, foi então que perguntou para o chefe da aldeia:
— Tem aqui alguém que trabalhe com madeira, que seja capaz de fazer uma roda, como a que desenhei?
Gat pensou um pouco, depois disse:
— Licos, mora na entrada da mata dos “lutis”, um tipo de pássaro. Corta madeira, tira tábuas, faz carros.
— Gostaria que me levasse lá.
— Não sendo hoje, qualquer outro dia.
— Depois de amanhã, está bem?
— Fica combinado, saímos cedo.
Depois dessa conversa, Salésio foi para casa e retornou para seus desenhos, continuando a planejar a pequena usina.

No dia seguinte, lá estava ele novamente a conversar com a mulher de longos cabelos. Dessa vez não parou muito, indo logo para a beirada do rio procurando examiná-lo. Uma pinguela com corrimão permitia a passagem para o outro lado. Assim, ora estava numa margem, ora na outra, para espanto de Oda, que começou a desconfiar da sanidade do homem.
Atenta aos movimentos de Chato, não o perdia de vista, o que fora oportuno, porque, de repente, escorregou e:
— Socorro!, não sei nadar!
Mais que depressa, Oda do jeito que estava, atirou-se às águas não muito fundas, abraçou-se a ele, puxando-o para a margem, até retirá-lo para fora, com a ajuda de outras companheiras.
— Está ficando louco? Ficou de um lado e do outro do rio, vi que ia cair a qualquer momento. Disse a mulher em tom de censura.
— Estava calculando distâncias para quando for assentar a turbina.
— Não entendo nada disto, precisamos trocar de roupa.
Enquanto caminhavam, Salésio não deixara de observar as roupas molhadas externarem toda feminilidade da nativa. Sentia ainda os braços dela a segurá-lo, fortes e macios.
Naquele momento percebera a realidade, estava apaixonado, tanto quanto um jovem. Era algo novo para um coração que nunca havia entrado nesse lado da vida.
      
— — —

O único a não tirar férias fora Regis, passava os dias a analisar detalhes do que considerava sua missão de vida.
Casado, sem filhos, amava a esposa, mas não deixava de sentir que algo lhe faltava.
Assumir a responsabilidade de um plano com as dimensões que estava tomando, preenchera todo seu vazio íntimo. Tornara-se sua razão de existência.
Naquele mês, os membros da Central não esperavam reunião, quando foram surpreendidos pela convocação.
Contrariados, mas sem reclamação, foram para a habitual sala de conferências. Regis nem se desculpou, foi logo ao assunto:
— Pedi para virem, porque o tempo é valioso, tudo que é previamente preparado representa cinquenta por cento a mais no acerto das decisões.
O motivo porque os chamei, é para discutirmos algo que faremos no final, mas que vai requerer o máximo de nós. Precisamos mapear toda faixa territorial livre com total segurança, muito antes dos fatos acontecerem.
— Mas as inundações só vão ocorrer daqui a vinte anos, atalhou Jansen.
— E se dentro de um ano tudo se desencadear? Você garante que não?
— Bem, pelos meus cálculos não. Mas garantir, bem, garantir não posso.
— Pois é isto. Não discuto sua estimativa Jansen, mas não podemos ficar presos a ela. Talvez não aconteça, mas tudo pode precipitar e não temos nada preparado.
Pensando no pior, o caminho é sabermos com antecedência onde colocar o povo de Marino.
Se soubéssemos hoje que as geleiras se desgarraram, que a camada fina se derretera e as águas estavam invadindo as aldeias, quase nada poderíamos fazer.
Portanto, vejam se tenho ou não razão em chamá-los. Muito antes das inundações, pretendo fixá-los em lugares seguros. Temos que visualizar a situação com realismo. Não sabemos o momento exato.
Concordaram com Regis, de fato, precisavam agir, numa emergência saberiam o que fazer.
Jansen observou:
— Se o Comandante Marcos concordar, poderíamos baixar ao máximo a órbita da espaçonave para uma análise detalhada da superfície.
Por sua vez o Tenente Fusco comentou:
— Temos veículos não tripulados, justamente para análise de terrenos. Seria oportuno colocá-los sobre as áreas geladas, para uma verificação completa.
— Concordo Fusco, mas quero dizer que não pretendo ocupar nenhum ponto fora das regiões habitáveis. Na minha opinião, não vai ocorrer o fim do planeta, apenas acomodação das águas, que procurarão os lugares baixos. Precisamos apenas saber até onde o volume alcançará, isto é, onde será o futuro nível. A grande maioria das vilas está em locais baixos, em vales. Se continuarem lá, certamente serão varridas, mas se as colocarmos sobre platôs de montanhas ou sobre locais de altitude acima, estarão salvas. Portanto, quero saber com a máxima segurança, onde estão essas áreas. Para isto poderão usar todos os instrumentos necessários.
Quanto às geleiras, não podem ser desprezadas, é importante ser conhecido o grau de rigidez, o estado de liquidificação, o tempo que levará para se decompor, a profundidade, para onde as águas se escoam, etc.
Próximo ou não das vilas, deverá ser marcado o ponto no mapa para a transferência de cada uma, isto é prioritário.
Resolvida esta parte, ai sim, nas primeiras denúncias de problemas, principalmente na orla marítima, tomaríamos as providências de assentamento.
É provável que algumas poucas aldeias nem precisem ser transferidas, mas é certeza que a maioria seja. Assim, precisamos também pensar agora no que será feito. A faixa disponível possui densa vegetação, portanto nos lugares das novas instalações, terão de ser abertas clareiras, bem como preparação para as construções. Como solucionaremos?
— Isto poderá ser resolvido com envio de aviões de combate. Bombardeariam a região marcada, depois um transportador levaria as máquinas para a terraplanagem, respondeu Fusco.
— De fato, nosso trabalho poderia ser executado com rapidez. Está é a solução, faça um estudo detalhado Tenente, deixando tudo pronto para o momento.
 
Os demais participantes da reunião, bastante leigos no assunto, se limitavam a ouvir. Regis no entanto, levantou uma outra parte da questão que envolveria todos os membros.
— Vimos o lado técnico, não podemos esquecer que lá em baixo estarão homens, mulheres e crianças que verão seus antigos lares destruídos. Enfrentarão radicais mudanças. Temporais, neves, descontroles climáticos variados vão ocorrer. Vão precisar de muita ajuda.
O Padre Santos, que aguardava uma oportunidade, comentou:
— Acredito que possa coordenar esta parte, farei um completo levantamento dos problemas que surgirão. Já possuímos uma grande ponte com os Marinenses, representada pelos professores.

Durante todo o dia os homens da Central se mantiveram em estudos, ficando definido fatores importantes do projeto.
No final dos trabalhos, Regis referindo-se à futura mudança dos terrestres para o planeta, observou:
— Por maior tecnologia que tenhamos, não vamos poder organizar uma Nação separada. Lembrem-se de que a espécie deles conseguiu sobreviver na glaciação, criando imunidades que não temos. Mesmo assim, não somos diferentes fisicamente, exceto possuírem massa encefálica um pouco mais acentuada.
— Mas são primitivos, interrompeu Joseli, continuando:
Pelo que entendi, deveremos nos misturar com os peludos.
— Perfeitamente Joseli. Pelas normas de nossos ancestrais, sequer poderíamos entrar em Marino. Mas diante das circunstâncias, estamos criando condições para nos misturarmos a eles. Já temos o primeiro exemplo, o caso do Chato.
Sancho que pouco participava, atalhou:
— Não era esta a minha opinião, esperava que quando descêssemos, formaríamos uma nação.
— Onde? No Gelo? Ou deveremos esperar centenas de anos aqui para obtermos nossa faixa territorial?
Pelo levantamento de Jansen, nos próximos vinte anos haverá queda de grandes geleiras, mas isto não quer dizer que uma vasta área ficará disponível. Melhor explicando, essas novas áreas livres seriam impróprias para nossos organismos.
Por que estaríamos fazendo esta reunião, se não fosse para termos um levantamento das áreas vitais da faixa de terras? Lógico que a finalidade é a transferência das aldeias, mas também envolve nosso futuro e dos nossos filhos.
Bem, foram tantos acontecimentos e trabalhos ao mesmo tempo, que muita coisa deixou de ser debatida. Mas caso não perceberam, estamos sendo professores desse povo para que possamos criar uma civilização mais adequada aos nosso procedimentos.
Vejam que mencionei o Chato, ele está fazendo justamente o que gostaria que fosse feito, não importa o que tenha sido.
— Não entendo, comentou Fusco.
— É simples, vai para lá, conseguiu se adaptar, vai instalar uma pequena fonte de luz. Esta luz vai chamar a atenção, outras vilas vão querer ter a mesma coisa. Ele não deixa de estar colocando a sementinha do progresso. Logo os filhos de Marino que estudam aqui estarão super preparados e incentivados a criarem muitas coisas.
Quem sabe, outros dos nossos venham a querer viver na superfície levando algum tipo de atividade.
Conversando com Corin, me disse não ser incomum a existência de alguns nativos desprovidos de pelos, iguais a nós. É bom lembrar que possuem capacidade cerebral maior que a nossa, assimilam com facilidade os ensinamentos.
— Por que então estavam numa guerra interminável? Perguntou Fusco.
— Você já leu a história do planeta de nossa origem? As guerras de lá nunca terminavam, por milhares de anos estiveram presente, mesmo com tecnologia já avançada, demorando para serem extintas.
Se vocês não observaram, vejam que hoje reina paz entre as duas nações. Tenho certeza que isto acontece única e exclusivamente porque se uniram para nos observar. Para seus Reis, não somos inimigos, mas uma força muito grande. Sabem que não poderão nos vencer, portanto se acautelam.
Como já foi confirmado, possuem um Q.I. acima do normal, comercializam entre si, utilizam ouro para valores altos e uma liga com o mesmo metal para valores baixos, chamando seu dinheiro de “taro”. A grande maioria dos habitantes são “alfabetizados”. Acredito mesmo que a guerra entre eles tenha se originado por interesses econômicos.
— Tem razão, disse Jansen, acrescentando:
Recentemente conversando com Corin, me ocorreu perguntar-lhe sobre os motivos da guerra. Disse que começara no tempo dos avós. Alguns homens de Suma haviam descoberto um veio de ouro próximo à fronteira, acabaram entrando no território dos Nogos.
Soldados foram enviados para a região, alguns sumanos foram mortos. Houve revide, depois disto, pararam somente quando impedimos aquele combate.
— Minha gente, não estamos lidando com ignorantes. O que nos disse, confirmam minhas suposições. A princípio pensava estarem num remoto primitivismo, mas pelas informações dos casais, apenas não possuem um desenvolvimento industrial porque as jazidas minerais deverão estar debaixo das geleiras.
  
Resumindo, dentro das nações deles, não vamos poder formar outra, restando-nos a imigração pura e simples.
Terminado o encontro, todos acabaram concordando e firmes decisões foram registradas.

Aquele mês passou rápido, as férias foram curtas. No ano seguinte, talvez o período fosse aumentado, conforme promessa de Regis. Dez novos casais seguiram no lugar dos desistentes. Foram acolhidos por outros dez e aprenderiam na prática, depois ficariam no lugar deles, que por sua vez seguiriam para as aldeias “problemáticas”. Os adolescentes de Marino voltaram felizes, descontraídos e contentes por novamente poderem desfrutar do conforto da Astronave.
Jansen, em comum acordo com Marcos, baixaram ao máximo o enorme navio, passando a orbitar o planeta como se fosse uma estação de estudos.
Os professores aproveitaram a oportunidade para levarem os estudantes para o salão do visor público, boa oportunidade para serem orientados.
Enquanto isto, uma equipe levantava a topografia da área habitável, outra acompanhava os sinais enviados pelos veículos colocados nas regiões geladas. Não se perdera tempo, dados de importância máxima iam compondo o mapeamento desejado pelo Chefe da Central.

Corin e Silas haviam aproveitado ao máximo suas férias, divertiram-se ao lado do filho. Pela primeira vez estavam descansados para reiniciarem.
Quando a criançada voltou, viram feições diferentes de quando chegaram pela primeira vez. Se divertiram a valer durante a trajetória. No dia seguinte todos já estavam nos bancos escolares.
Os moradores da Roda, também retornaram a uma atividade intensa, dado o retorno das crianças. O reduzido número de habitantes integrava-se a um contínuo ocupacional nos trabalhos de apoio ao grupo de Marino. As pequenas fábricas, a própria produção agrícola e até os cuidados com o zoológico geravam serviços.

— — —

Regis estava sempre com novas ideias. Embora não houvesse pressa para colocação de humanos na superfície, ele pensava em tudo.
Percebendo que Sancho e Joseli queriam uma participação ativa no projeto, entregou a eles o estudo e a colocação de animais em solo, dizendo:
— Vocês serão os responsáveis diretos pelo controle e adaptação de nossa vida animal no Planeta. Deverão enviar pessoas que saibam ensinar camponeses a cuidarem deles.
Cuidado com o uso dos transportadores. Temos de fazer economia, procurem utilizar naves pequenas, entendam com o Fusco. Parte dos animais deverão ser doados, depois negociados. Vamos precisar do dinheiro de lá.
Para exemplo, galinhas, outras aves domésticas e porcos poderão ser enviados quando quiserem, para qualquer aldeia. Granjas não existirão, deverão proliferar normalmente. Levem pássaros e os soltem.
Oportunamente, quando os levantamentos que estamos fazendo terminarem, ou quando as novas aldeias surgirem, será a vez dos grandes animais.
Neste documento, vocês têm discriminadamente todos os passos a tomarem, e entregou a eles os papéis.
Agora prestem a atenção, com retirada de animais do navio, deverão ativar a produção da espécie diminuída.
Como já disse, quero obter algum lucro. Façam portanto uma doação controlada. Sobre isto, embora não venha ao caso, não só animais deverão ser vendidos, pretendo abrir nossos estoques de utilidades para comerciar, mas temos que ir devagar.

— — —

Na Vila Talma, conis carregando ou puxando caixotes sobre estrados chegaram, para infinita alegria de Salésio. Esquecera até de cumprimentar Jales e Júlia. Foi preciso que o rapaz desse um toque em seu ombro dizendo:
— Como vai Chato?
— Desculpem, estou tão emocionado que sinceramente nem os vi, e abraçou a ambos.
— Júlia deu um alô para as vizinhas e entrou em sua casa. Pensava encontrá-la pelo avesso, mas para sua surpresa, estava até mais limpa que antes. Acontece que Salésio era um solteirão, acostumado a cuidar de si e além disto, gostava das coisas organizadas. Ficou contente, fora um alívio depois de novamente passar um mês junto com aquele grupamento de animais e pessoas. Chuva, frio, terra barrenta, estava enlameada.
Logo chegou Jales, reclamando de seu estado, mas alegre, se entusiasmara com a felicidade do amigo. Este ficara lá, mostrando lugares para descarregar. Conversara com Gat, este lhe cedera um cômodo com porta para a rua. O Guardião estava ao lado dele, ajudando e vendo os objetos serem amontoados.
Quando terminaram o descarregamento, foi conversar com o dono dos animais para pagá-lo, possuía algum dinheiro local, mas tudo estava quitado. Ficou tempo ali, conversando com o Chefe da Vila, voltando para casa ao anoitecer, esquecera até de Oda.
— Jales, você pagou o transporte?
— Não, Regis conversou com Tropo e tudo foi providenciado.
— Nossa! O próprio Rei. Será que vou ter de chamá-lo na inauguração?
— Que loucura é esta? Você não me falou nada, foi uma surpresa quando me disseram.
— Foi uma ideia que tive depois que partiram. Quero iluminar o centro da Vila.
— E a máquina de costura?
— Bem, ... enrolou um pouco, ficou vermelho, depois disse: é para Oda.
— Quem é Oda?
— É uma mulher com quem fiz amizade.
— Bem, vamos comer, estou faminto e Júlia preparou alguma coisa boa, está cheirando até aqui.

No dia seguinte, ainda escuro, Salésio levantou-se, quase não dormira, imaginando sua construção. Não demorou, saiu levando um archote e a grande chave que Gat lhe dera.
Logo que chegou ao cômodo, começou a separar toda parafernália de coisas. O guardião acordou com o barulho e foi verificar, encontrando o amigo.
— É você Chato? Pensei que fossem ladrões.
— Não conseguia dormir, me desculpe. Vim separar o material. É o meu entusiasmo, esqueci até que a hora era imprópria.
Preparava para sair, quando Gat o interrompeu:
— Pode continuar, não se preocupe comigo, se soubesse que era você, nem teria vindo.
— Preciso encontrar a caixa de ferramentas, parte dela vou doar a Licos em troca do trabalho, conforme prometi no dia em que estivemos com ele. Mas são tantas coisas que preciso fazer um pouco de barulho.
Não vou demorar, abrirei aquele caixote, me dê uma mão, vamos traze-lo para cá. Espere um pouco, aquela caixa comprida parece uma das coisas que pedi.
O Guardião, curioso, não arredava pé. Passou a ajudá-lo, queria tanto quanto o outro ver o conteúdo, até mais que o terrestre. Assim, abriram o comprido e estreito volume encontrando várias serras para serem utilizadas por duas pessoas. O nativo não aguentou:
— Que coisa fabulosa, que material, só por uma destas, garanto que ele lhe faria o serviço.
Eram ao todo cinco, Salésio separou duas, adaptou os cabos e as colocou de lado. Depois, ajudado pelo outro, abriu a pesada caixa. Ali estavam ferramentas manuais de todos os tipos, sempre em triplo por espécie. Separou um jogo de cada e foi colocando junto com as serras. Chaves, martelos, alicates, torquesas, furadeiras, esquadros, réguas, plainas, enfim, tudo que existia.
Gat fora perturbado, mas em contrapartida se viu presenteado com várias delas. Depois procuraram a embalagem onde deveriam estar pregos, parafusos e outras miudezas. Nesse meio tempo, não perceberam que o dia chegara e já era quase hora do almoço. Foi quando Salésio comentou:
— Vou precisar de dois conis, será que me conseguiria.
— Pode deixar por minha conta, vou com você até lá.
Façamos o seguinte: Vamos almoçar, em seguida providencio os animais.
Alimentados e com os conis carregados, seguiram.
Licos, junto com alguns empregados, estava preparando toras, quando chegaram.
— Como vai Licos! Estamos aqui de novo, falou o Guardião.
— Tudo bem! Respondeu ele, enquanto limpava madeiras.
E os senhores?
— Vim trazer-lhe as ferramentas que prometi, gostaria que desse uma olhada.
O profissional encostou o machado e foi até onde estava, ajudando a descer os objetos.
Espalhadas as peças no chão, Licos parecia não acreditar, pegava e olhava cada coisa, tornava a olhar e a examinar, por fim disse:
— Nunca pensei que existiam, sinceramente não acreditei quando me disse.
Seus olhos brilhavam, já encontrando utilidade para cada objeto. Até se esqueceu das visitas, experimentando aqui e ali os belos exemplares metálicos.
— Então Licos, negócio fechado?
Mas o carpinteiro não deu atenção a Chato, continuava abobalhado diante do material.
— Licos, ô Licos, Salésio está lhe fazendo uma pergunta.
— O que?
— Acorda homem! Aceita o negócio?
— Sim! Claro que aceito, farei o que quiser, vai precisar me explicar novamente.
— Breve voltarei para orientá-lo. Preciso ver o resto das peças, só então poderei desenhar com exatidão o que terá de ser feito.
Até mais!
Quando saíram, sorriam diante da felicidade de Licos.

Antes de entrar em casa, Salésio foi a casa de Oda, encontrando-a bastante amarga.
— Porque não tem ido ao rio?
Até se surpreendeu com pergunta tão direta, pensou:
— Sinal de que sentiu falta de mim. Isto é bom. Vou até prolongar um pouco. Respondeu:
— Bem, fiquei passeando na praia estes dois dias.
— Porque não volta para lá? O barulho do mar deve ser melhor que minha voz!
— Não fique irritada, ontem recebi o material que pedi e hoje passei o dia desmanchando os pacotes, depois fui falar com Licos e só agora tive tempo de vim lhe ver.
Mas, parece que sentiu minha falta?
— Bem, é que estava acostumanda a vê-lo todo dia, falou a mulher já em outra tonalidade e amável.
— A máquina que lhe falei chegou. Preciso de um carrinho para transportá-la, ou da ajuda de uma pessoa.
Amanhã cedo você pode ficar aqui? Agora está escurecendo e quero mostrar-lhe como funciona.
— Minha filha e meu genro vão chegar, nem ia para o rio. Assim, peço para o Clifo ir lhe ajudar.
— Sabe Oda, gosto muito de você, queria ... bem, deixe para depois, um dia lhe digo.
Despediu da mulher, que ficou a acompanhá-lo enquanto distanciava e pensava:

— Ele até que é simpático, não é peludo, mas não sei porque, fico com raiva quando não vem conversar. Disse que gosta de mim, será que quer casar comigo?

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