domingo, 5 de outubro de 2014

O EXILADO

  
As correntes de pensamento divergem, os indivíduos certos ou errados prendem-se muitas vezes às suas opiniões e tentam incutir em outros seus princípios. A Roda, embora tenha-se desgarrado da frota e perdido mais da metade dos habitantes, manteve as formas de ensinamentos originais, seguindo até o mesmo calendário. No entanto, entre as variadas famílias, um resíduo pequeno de inconformados estava sempre a criar discordâncias diante dos procedimentos tomados. Interessante que mesmo nessa pequena aglomeração, não superior a três mil pessoas, ainda havia um percentual de nocividade relativamente elevada, embora o altíssimo grau cultural. Verdade que eram não superiores a quatro dezenas, mas poderiam por em risco o projeto. Destacava-se entre eles Salésio, homem com cerca de sessenta anos, fisionomia fechada, solteiro, muito popular, apelidado de “Chato”.
Bastava qualquer desentendimento para ele estar presente. Só uma coisa lhe era favorável, não se importava com o nome que lhe deram. Chato era mesmo impertinente, mas possuía alguns seguidores. Dirigia uma fábrica de confecções herdada dos pais, seus empregados acostumados com seus modos, o toleravam. 
Desde a chegada dos peludos, termo que não usava outro, Chato passava os dias discordando das atitudes tomadas, ora falando para um, ora para outro. Chegava a ponto de chacotear as inocentes crianças, incitando as da astronave a fazerem o mesmo. Há quase um ano a garotada de Marino transitava por todos os pontos da cidade, se misturando com os da nave. Vez ou outra havia uma briguinha entre alguns meninos das duas partes, em oitenta por cento estava o “dedo” de Salésio.
Não escondia sua audácia, mesmo diante do afastamento que os demais moradores o colocavam. Parecia até gostar dessa punição coletiva, não deixava de ser uma forma de se evidenciar.
Seus amigos o apoiavam, mas não participavam das incitações, apenas escutavam as vantagens que contava.
Cada dia que passava, mais intolerante se tornava. Acabou sendo chamado pela justiça, foi ameaçado de prisão, mas nem isto o intimidou.
Quando percebeu que estava sendo motivo de comentário na TV, piorou seu comportamento.
Um grupo liderado pelo agricultor Jonas já se dispunha a dar-lhe uma surra. O encontraram no lugar de sempre, perto da escola. Estava se transformando num maníaco.
Jonas pediu aos companheiros para deixarem-no falar.
— Chato, você bem merece o nome que tem, nunca fez nada de útil, nós vamos ensiná-lo a se portar. Se importunar mais um garoto ou garota de Marino, vai se haver conosco.
Diante da ameaça, ele se retirou e foi para sua oficina.
As atitudes do irresponsável chegaram ao conhecimento de Regis, este que não admitia riscos no projeto, não deixou de ver perigo. Entrou em contato com o Marcos, expondo a situação.
— Marcos, sei que não pode prendê-lo por tempo indeterminado, me informaram que foi ameaçado e mesmo assim continua a perturbar as crianças.
— Realmente, Salésio é um problema sério, passa os dias provocando os menores. É do meu conhecimento que foi ameaçado de levar uma surra, mas nem isto o fez parar. Parece ter um parafuso solto.
— Pois bem, este caso é de sua área, mas se me permitir tenho uma solução.
— Qual?
— Mandá-lo para baixo e deixá-lo por um ano, junto com os casais, com a obrigação de auxiliá-los. Além de corrigi-lo, espero, servirá de alerta para alguns seguidores.
— Parece uma solução, concordo, o mandarei a você. Tome as providências.

Conforme o combinado, Chato foi encaminhado a presença de Regis, pessoa que vivia a criticar. Bastante irônico, sentou-se frente ao Chefe da Central.
— Senhor Salésio, mandei chamá-lo porque vou precisar de sua ajuda.
— Se for para servir aqueles meninos, não conte comigo.
— Em primeiro lugar, o senhor não está em condições de exigir nada, posso prendê-lo pelo resto de sua vida se necessário. Em segundo, não será aqui na Roda que vai nos ajudar, mas na superfície do planeta.
O homem. meia idade, nos padrões terrestres, moreno e com feições de deboche perdeu seu característico, ficou sério, trêmulo e branco. Não esperava atitude semelhante, julgava que apenas ia receber uma advertência.
Demorou para se recompor, quando conseguiu exclamou:
— Vocês não podem fazer isto!
— Podemos sim, por dois dias ficará detido, até tomarmos as providências e escolhermos o local. Isto é para que possa valorizar nosso trabalho e, para que participe e conheça de perto o que lá é feito.
Ficará aproximadamente um ano e quatro meses junto com os nativos, vamos dar-lhe tudo que for preciso. Seu papel será auxiliar no relacionamento e nos cursos. Acompanharemos passo a passo suas atitudes. Se criar caso, seu tempo será aumentado, podendo ficar definitivamente lá.
— Mas já não sou jovem, minha idade pesa, tenho meu trabalho aqui.
— Deveria ter pensado nisto antes de criar problemas.
— E se prometer modificar.
— Agora é tarde, você já foi advertido pela segurança e a desrespeitou. Vimos então que parece o único que não quer ver a finalidade do que fazemos. Se alguns dos menores, quando voltarem revelar aos pais que foram maltratados ou chacoteados, o relacionamento com o povo de Marino pode ficar delicado, isto por causa de sua estupidez. Somos apenas três mil ou pouco mais, o número deles é de aproximadamente cinco milhões. Portanto, seu cabeça oca, entenda que esta nave não ficará eternamente suspensa, que não temos outro lugar para ir, que nós ou nossos descendentes terão de compartilhar com os nativos a sobrevivência. Não vamos nos arriscar, deixando-o aqui. Na convivência obrigada que terá com os da superfície, temos certeza de que não adotará procedimentos iguais.
Agora, pode retirar-se e acompanhar os guardas.
Regis, consciente de ter tomado a atitude correta, foi ter com Jansen para definirem o local onde deixar Chato.

Enquanto isto, na última Vila a leste da faixa territorial da Nação Suma, Júlia preparava a refeição enquanto Jales atendia um chamado no comunicador. Não conseguiu entender o que o marido dizia. Colocou a mesa e ficou esperando, demorou um pouco. Quando o moço voltou, estava com a fisionomia carregada, antes que ele comentasse perguntou:
— O que aconteceu? Algum problema?
— Tem sim, vai estragar nosso almoço. Você acredita que vão mandar o Chato para cá? Logo ele?
— Está brincando! Conheço aquela peça, um causador de encrencas, fuxiqueiro.
— Pois é, tentei por todos os meios dissuadir Jansen. Disse que somos os mais capacitados para assumir tal responsabilidade. Por isto demorei para desligar. Enquanto não concordei não parou de insistir. Não podem colocá-lo numa prisão, vive criando problemas para as crianças que foram para lá.
— Quando vem?
— Deve chegar amanhã, vão deixá-lo na praia.
— Vou preparar o quarto que temos a mais. Fazer o que, acabou nossa tranquilidade!
— A nave virá de madrugada, como na vez da caixa. Vou ter de esperá-lo, vão me entregar um envelope com instruções. Assim, deixarei a aula de hoje para você. Vou deitar cedo, boa parte da noite terei de ficar esperando.
— O homem já começou a dar trabalho, completou Júlia.
O casal não gostou da incumbência. Qualquer estranho em casa já perturbaria a intimidade deles, quanto mais um elemento como Salésio. Logo quanto tudo estava bem, que haviam conseguido a aceitação popular.
Júlia passou aquele dia com dores de cabeça. Jales nem saiu, qualquer coisa o irritava, não se conformava.
Não adiantou tentar descansar, a esposa fora e voltara do curso e ele sequer havia fechado os olhos.
A madrugada chegou, levantou-se, agasalhou-se, muniu-se de uma lanterna e foi para o lugar combinado. Sentou-se sobre a areia, desligou a luz e ficou a ouvir o ruído das ondas do mar. Estava cansado, esgotado mesmo, por instantes esquecera o fato e o sono lhe veio. De repente, acordou assustado com o ensurdecedor barulho do veículo espacial.
Dois seguranças que vieram juntos, ajudaram no transporte da bagagem até a moradia do instrutor.
Chato emudecera, nada dizia, simplesmente seguia aqueles homens. Na casa continuou na mesma, mostraram-lhe o quarto e a cama onde se deitou sem cumprimentar Júlia ou qualquer um deles. Nem respondeu as perguntas que lhe foram feitas. Parecia traumatizado, perdido em seu mundo.
Por último, os homens que ajudaram Jales, entregaram ao rapaz um envelope com as instruções de Regis. Despediram e retornaram, minutos depois, pela segunda vez o estrondo da nave a decolar.
Desta vez, muitos do bairro ouviram e até viram o objeto riscar o céu na escura noite. Encabulados passaram a comentar, As vizinhas vieram falar com Júlia, que procurou explicar:
— É o carro que nos leva para o alto, ou nos traz. Não se preocupem, não há perigo algum. Apenas trouxeram mais um de nós para ajudar no treinamento.
— Vão para aquele lugar que vocês mostram no curso?
— Exatamente.

Chato acordara assustado com o ambiente, pensava, tivesse sido um sonho tudo que passara. Quando caiu em si, percebeu que haviam cumprido o que Regis dissera. Passando a mão no rosto, enxugou as lágrimas, se arrependia, maldizia sua própria boca. Estava nesse estado quando Jales bateu na porta e entrou, chamando-o para o café. Pela primeira vez balbuciou algumas palavras, precisava ir ao sanitário.
Orientado sobre os procedimentos, se higienizou e aceitou o convite do moço.
Muito tímido diante do casal, envergonhado, sentou-se junto à mesa e se alimentou. Estava tão humilhado, que a moça percebendo a situação se apiedou, esqueceu sua indignação e disse:
— Não se preocupe senhor Salésio, aqui não é tão ruim como pode parecer. Depois de se acostumar, vai se sentir muito bem.
— Por favor, não me chame de senhor, pode me chamar apenas de Chato, disse o homem esforçando-se por ser amável.
— Pois bem Chato, vamos lhe instruir em tudo, logo se familiarizará com o povo daqui, são gente boa, comentou Jales.
— Fiquei dois dias detido e na certeza que viria parar aqui, pensei muito, acabei concluindo que minhas atitudes durante toda a vida tem sido erradas. Desde meu tempo de escola, estava sempre a divergir dos companheiros. Não consegui nem me casar, nenhuma moça se interessou por mim.
Nunca aceitava o que vou lhes dizer: — apesar de minha idade, preciso mudar. Vou me esforçar para modificar minha personalidade.
Desta vez recebi a lição que merecia, mas o que influiu mesmo em meus pensamentos foram algumas palavras de Regis. Nunca me passara pela cabeça dar importância ao trabalho que está sendo executado.

Mais descontraído, passou a perguntar sobre o sistema de vida, sobre o que deveria fazer. Depois Jales o levou a caminhar, o apresentou a alguns amigos. Mostrou-lhe o mar e a amplidão do novo mundo. Assustou-se ao ver os peludos auruns rosnando para ele. A noite, participou da reunião e foi apresentado ao pessoal.
No seu íntimo, ainda atordoado pelos acontecimentos que mudaram radicalmente sua existência, um fato novo acontecera: não se importou com a diferença racial, até se esforçou em sorrir para a plateia. Escolhera o melhor caminho para recomeçar sua vida.
Após dois meses, Chato já estava bem entrosado. Para alegria do casal, sua presença na casa não os importunava. Levara a sério a intenção de melhorar e se portava ao contrário de quando estava na astronave. Ainda era cedo para dizer que estava curado, mas os informes lhe eram favoráveis.

Na Roda, diante da atitude tomada, os comparsas do pequeno industrial desapareceram, as briguinhas das crianças acabaram e Corin aproveitou para uni-las cada vez mais, promovendo constantes festas infantis.

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