quarta-feira, 3 de junho de 2009

Solidão

A maior solidão que existe é a de um astronauta sozinho numa viagem estelar. Vê a Terra diminuir até desaparecer e o sol transformar-se numa estrela igual a bilhões de outras que pontilham o universo.
Torna-se o maior filósofo do cosmos. Pensa no planeta em que vivia, na arrogância de muitos e na opulência. Na pobreza extrema, nas desavenças, nas guerras e nas glórias inglórias.
Sente a fragilidade de seu corpo diante do universo.
Quando Augusto aceitou o desafio, sabia que, se voltasse, seus parentes e amigos não mais existiriam, centenas de anos teriam passado. Mesmo assim, despediu-se de seu mundo.
No ano 3010 viagens acima da velocidade da luz faziam parte da rotina e o material das naves não sofriam desgastes. Todas as dificuldades físicas para vencer grandes distâncias astronômicas haviam sido superadas.
A nave estava pronta. Para eliminar peso, fora adaptado um processador físico-químico que captava átomos dos componentes orgânicos advindo do lixo e até das fezes, compondo massa alimentar e materiais indispensáveis.
O jovem era um astronauta com experiência. Quando soube da pretensão científica se inscreveu como voluntário. Sequer analisou como seria sua vida no vazio sideral. Já havia participado de viagens através do sistema solar, mas ir para uma outra estrela de certa forma o fascinou. Diante da recusa de muitos, acabou sendo ele o escolhido.
A curiosidade de ver outro sol superou uma análise realista e mais profunda do que seria a viagem. Assim, entrou naquilo que parecia um pequeno apartamento, com uma mesa de comando, banheiro e cama, tudo dentro de um perfeito equilíbrio gravitacional e com boa temperatura. Confortavelmente instalado nem percebeu quando o objeto ganhou o espaço.
Sentou-se frente aos painéis e passou a observar o visor. Foi tudo muito rápido.
Saiu do sistema solar em minutos, depois o vazio estelar parecia não ter fim.
Após quatro meses, a angustia passou a dominar seu íntimo.
Apenas um ser fora do habitat, totalmente alheio ao cotidiano da Terra.
Olhava o visor e via os intermináveis fachos de luz e no fundo estrelas sempre estáveis. Noutro colocava imagens e registros de seu mundo que já era passado.
A nave já estava acima da velocidade da luz, viajando dentro do espaço-tempo, conseguido através das dobras que iam sendo criadas.
Internamente os meses corriam normalmente e após um ano sua mente estava descontrolada, pensava:
--- “Séculos” de espera para que?
Para alcançar um outro planeta?
Estava arrependido de ter aceitado a missão cuja finalidade era apenas verificar seu próprio comportamento.
---Verificar o comportamento para que? Continuava pensando.
Afinal se voltasse, chegaria numa outra época. Mas os cientistas diziam que no futuro ele traria informações de suma importância registradas no computador de bordo.
A nave, uma perfeição, continha os últimos avanços tecnológicos, não permitia qualquer erro no controle do material “exótico” que motivava grandes pulos no cosmos.
Apesar do seu arrependimento os medidores começaram a indicar o fim da viagem.
Seja como for o fim do trajeto estava próximo; chegara a sonhar com aquilo, mas nunca havia parado para pensar na falta de semelhantes à volta.
Quase nem olhava mais os instrumentos, o fez devido ao sibilo de um alerta automático.
Um lampejo de alegria vislumbrou-se em seu rosto. Estava entrando no sistema Alpha Centauro. Esquecendo de sua angústia acionou botões no painel e como por encanto os fachos luzentes desapareceram.
Era de seu conhecimento que sondas já haviam estado no complexo Alpha. Três estrelas A, B e C comandavam famílias de planetas. Alpha C obscura, não fornecia calor suficiente e seus mundos eram gelados. B apesar de anã ainda mantinha-se relativamente ativa orbitando A. Os planetas pareciam se misturar. Embora a dança cósmica, a vida existia em três das dezenas de mundos.
O objetivo de Augusto era descer no quinto planeta que orbitava Alpha A.
No momento exato o terrestre acionou o programa que o levaria ao globo já visível no computador de bordo. Era só esperar.
A nave aproximou-se rapidamente daquele mundo parecido com a Terra, mares e continentes ficaram visíveis.
Desacelerou automaticamente perto do solo, momento em que o terrestre tomou o controle manual.
Augusto viu florestas, rios, animais correndo e um ambiente que lhe parecia familiar. Sentiu-se na Terra, pois quase nada era diferente.
Procurou por cidades, encontrou algumas ruínas, provas de que seres inteligentes existiam.
Examinou os quadrantes daquele astro, somente depois de muito tempo encontrou indícios de atividades. Uma pequena vila com estranhos homens e mulheres bem diferentes da raça humana, movimentavam-se sobre duas pernas, braços longos, cabeças pontiagudas e corpos até parecidos aos dos humanos. Viviam em cabanas de pedras, rústicas, sugerindo serem primitivos.
O terrestre escolheu uma clareira próxima, examinou as informações vitais e não teve dúvidas, poderia sair da cápsula sem qualquer medo e respirar tranqüilamente o ar. Desceu suavemente e saiu de sua prisão.
Estava livre, nada como se movimentar normalmente, sem necessidade de equipamentos mecânicos.
Armado com um bastão laser já ia dirigir-se para a aldeia, quando um grupo dos estranhos vieram em sua direção, pensou:
--- Como vou entrar em contato com eles, se isto for possível?
Estava ainda imaginando, quando o hominídeo que estava a frente dos demais, surpreendentemente falou com ele na sua língua:
--- Bem vindo a Tjponuc.
--- Mas como pode conversar comigo, não entendo, é impossível. Disse Augusto estupefato.
--- Sou Licoc e chefio este acampamento. Venha para minha casa.
Atônito Augusto custava a acreditar no que estava lhe acontecendo. Sequer mostraram muito interesse em observarem a nave próxima, tão pouco se surpreenderam com sua presença.
--- Afinal o que estava acontecendo? Continuava a pensar enquanto seguia o grupo.
Tão logo se aproximaram da aldeia, Augusto viu que as diversas casas eram feitas com pedras e muito sólidas.
Sempre seguindo Licoc subiu escadas e entrou num recinto quadrado onde uma grande mesa rústica e cadeiras pareciam estar a sua espera. O terrestre sentou-se e de imediato perguntou:
--- Como falam minha língua e porque não se surpreenderam com minha chegada?
Licoc esboçando um esquisito sorriso, respondeu:
--- Há muito tempo, houve uma grande tragédia em nosso planeta, poucos escaparam. Quando seu povo chegou, nossos antigos parentes estavam ilhados e destinados a morrer, eles transportaram todos para este local.
--- Mas onde estão eles?
--- Após colocarem a salvo nosso povo voltaram para o espaço.
--- Todos?
--- Alguns ficaram e nos ensinaram, seus descendentes vivem nas montanhas.
Augusto ficou radiante, afinal ia poder encontrar semelhantes naquela “Terra”. Não perdeu tempo:
--- Poderei ir até lá?
--- Claro Augusto, logo que o segundo sol se por poderemos levá-lo. Descanse e experimente nossos alimentos.
No intimo o terráqueo imaginava estar sonhando. Não sabia da existência de uma colônia terrestre, apenas que viagens tripuladas para Alpha não resultaram em nada, ou melhor, quando saiu ainda esperavam a volta das expedições. Todo conhecimento existente havia sido colhido através das sondas.
Após o merecido descanso, o jovem seguiu a pé o estranho cortejo.
Andaram por planícies, passaram perto de lagos e finalmente caminharam por um terreno que se elevava sempre, acompanhando uma trilha bastante visível.
Após horas sobre uma terra rocha margeada por uma vegetação quase idêntica a que conhecia, chegaram a um platô e lá estavam casas iguais às da aldeia. Não demorou a que homens e mulheres viessem ao encontro da comitiva.
Muito mais surpresos que os nativos, um homem bastante idoso veio ao encontro de Augusto, logo lhe perguntando:
--- Como chegou até aqui? Não posso acreditar. E os outros?
--- Vim sozinho numa viagem que nem quero recordar. Minha nave está lá em baixo.
O velho abraçou o visitante, logo vários outros também vieram e o levaram com entusiasmo para dentro do prédio maior.
Depois de entregar Augusto, Licoc voltou com seus companheiros, deixando-o com seus iguais.
Augusto que se sentia sufocado pela solidão deliciava-se com os afagos daquelas pessoas.
Depois das apresentações, ficou sabendo que o ancião que o acolheu chamava-se Jaques e era bisneto de um dos astronautas que ficaram no planeta.
A colônia de humanos já contava com cerca de oitocentos descendentes dos noventa e cinco homens e mulheres que não seguiram viajem.
O recém-chegado quase não se continha de tanta alegria, ver pessoas iguais era para ele um prêmio inesperado. Queria conhecer todos até que se deparou com Carmina, uma bela jovem que fez seu coração palpitar. Logo começaram a conversar e ela lhe disse:
--- Quanta inveja tenho de você. Viajar de uma estrela para outra. Como deve ser emocionante.
--- Engano seu, nem pense nisto. É quase como morrer.
--- Ora, não pensava que ia dar-me esta resposta. Pelo meu entendimento, parece que não quer voltar para a Terra.
--- Não quero mesmo, se me aceitarem pretendo viver aqui e nunca mais chegar nem perto da nave que deixei lá embaixo.
Carmina ficou radiante. Após aquele breve encontro procurou seu pai e contou-lhe sobre a intenção do rapaz.
O tempo passava e a presença do astronauta deixara de ser novidade. Todos sabiam sobre a decisão de Augusto.
Passou a namorar Carmina e a fazer planos de uma vida a dois. Continuava morando na casa de Jaques, tendo por companhia Licurgo e Justos, ambos netos do idoso homem. Forte amizade surgiu entre eles, mas se o terrestre quisesse continuar lá seria preciso compreender certas regras. Foi o mais velho dos dois, Licurgo, quem tomou a iniciativa de lhe dar algumas explicações:
--- Augusto, você não fez segredo de que pretende continuar no planeta. Se assim for, conforme pediu meu avô, devo orientá-lo.
--- É verdade Licurgo. Encontrei aqui um pedaço da Terra e não quero em nenhuma hipótese ter que voltar.
O nativo humano pensou um pouco e depois começou:
--- Demos o nome para este mundo de Paraíso, o que não quer dizer que assim ele seja. Acredite, aqui é bastante hostil. Conheço bem sobre a Terra porque deixaram aqui uma boa biblioteca. Temos uma escola e vimos mantendo o conhecimento.
Como já percebeu, não existe noite total aqui, apenas uma penumbra, sendo difícil à visão de muitas estrelas. Há chuvas torrenciais, tempestades e neve. As espécies animais são bem diferentes, mas servem para nossa nutrição, caçamos e pescamos. Plantamos vários cereais nativos. Tudo aqui é primitivo, fabricamos ferramentas até com pedras ou madeira. Os nossos vizinhos fazem o mesmo.
O trabalho é intenso, temos que plantar e colher antes dos fortes temporais e da época fria. São dois sóis. De quinze em quinze meses terrestres, Beta, a estrela menor, se aproxima com seus planetas e causam descontroles climáticos. Para que entenda, também esse é o espaço que consideramos um ano aqui. Ainda não conhecemos as demais regiões, sabemos apenas que uma civilização muito adiantada que existiu desapareceu na recente grande catástrofe.
Não sabemos qual será o nosso futuro, apenas que para sobrevivermos temos que erguer as casas que já conhece. Você desceu no melhor período e tudo é tranqüilo. Esta é a época de plantarmos, depois colhemos os grãos e fibras, armazenamos e nos recolhemos até por três meses. Nesse período confeccionamos nossas roupas. Não possuímos energia elétrica e algumas coisas que foram deixadas não existem mais. Toda casa tem fogão de lenha, a qual deveremos ter o suficiente para enfrentarmos a época de reclusão.
O trabalho braçal é função de todos e terá também que se dispor para essa luta.
--- Licurgo, não se preocupe, já observei como é a vida aqui. Farei tudo o que puder, ajudarei nas tarefas, partilharei com vocês todo sofrimento, mas nunca mais vou querer voltar.
Foi a primeira e a única vez a ouvir orientações.
Com uma disposição que surpreendia a todos, o jovem se integrou ao trabalho e auxiliou na lavoura. Sempre estava presente em todas as atividades.
Com ajuda de companheiros, moveu grandes pedras e ergueu o seu lar.
Ainda no bom tempo, abraçado com Carmina foi para o Templo onde Jaques deu a benção ao casal.
Após o dia festivo seguiram para a recém construída casa e Augusto sentiu-se o mais feliz dos mortais.
Passado algum tempo voltou à nave para desativá-la. Retirou objetos úteis para a comunidade, desmantelando tudo que conseguia, principalmente os propulsores. Quando nenhum risco oferecia, abriu as portas para que as crianças humanas e nativas brincassem.
No seu último retorno com amigos, transportando sucatas, desabafou: --- Nunca esperava desmanchar a nave que me trouxe e o fiz com satisfação. Este monte de pedaços deverá servir para alguma coisa. Tive muita sorte e agradeço a Deus por estar entre vocês, mas de tudo isto tirei uma lição. As estrelas devem ser respeitadas e os seres inteligentes do Universo devem ficar nos seus lugares. Isto faz lembrar-me de um ditado: “cada macaco no seu galho”.

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